Em 1968, George Romero definiu os conceitos e as temáticas sociais dos zumbis no cinema de terror através do lendário A Noite dos Mortos-Vivos. Até metade da década de 80, ele fecharia uma trilogia dentro do subgênero “zumbiniano” com outros dois filmes: O Despertar dos Mortos (1978) e Dia dos Mortos (1985). Do lançamento de A Noite até os dias atuais, os zumbis passaram por grandes transformações com produções que variaram do cenário B de horror ao mainstream.

Só que antes de Romero lançar suas continuações ou a praga de filmes de zumbis estourar no cinema como um todo, um diretor espanhol de origem galesa criou uma saga de mortos-vivos de maneira rápida e econômica, daquelas que se você piscar perdeu. Seu nome é Amando de Ossorio (1918-2001) que na década de 70 deu a sua contribuição ao subgênero de zumbis com a bela quadrilogia dos mortosvivos cegos ou templários mortos-vivos (1972-1975).

Formado em jornalismo e trabalhando como radialista, Ossorio tinha como hobby a pintura e a fotografia. Alinhou todas estas características dentro dos seus filmes de horror, valorizando as imagens e a direção de arte que deixavam suas produções elegantes, semelhantes a uma pintura gótica insinuante. Depois de participar como assistente de direção de vários Spaghetti Westerns, ele comandou o seu primeiro filme de terror, Malenka (1969), uma produção de vampiros charmosa e interessante.

A Noite do Terror Cego (1972) é a sua maior contribuição para o fortalecimento do subgênero zumbi.  Se Romero foi o primeiro a dar o pontapé inicial de forma crua e crítica para a epidemia de zumbis que o cinema veria pelas décadas seguintes, Ossorio explorou este caminho, com estilo e violência.  A Noite do Terror Cego é uma produção classe C e não digo isso para desqualificar a obra, mas sim porque o orçamento utilizado no filme foi duas vezes inferior à obra americana. O próprio diretor teve que rodá-lo em um único mês, para aproveitar o seu período de férias da rádio que trabalhava.

Ossorio criou uma obra ímpar e que possui suas próprias ideias originais, afinal se utiliza da lenda dos cavaleiros templários que saem das tumbas como zumbis cegos que perseguem suas vítimas, as identificando por meio do batimento cardíaco delas. Um enredo bem criativo e que nada lembra o clássico americano. Por isso, o fã de terror ou de zumbis que se preze, deve agradecer a este diretor galês pela construção de uma série tão interessante e elegante, feita de forma barata, repleta de inventividade. Se do lado americano temos Romero como pai desta árvore genealógica zumbiana, do lado europeu, Ossorio se destaca como aquele tiozão carismático e divertido que toda família possui (e adora), ainda que suas produções passem longe de serem fofinhas em razão da violência acima da normalidade.

Por isso, segue uma breve análise dos quatros filmes e sua importância dentro do subgênero neste Especial do Terror no Cine Set.


Onde Tudo Começou – A Noite do Terror Cego (1972)

Na época do seu lançamento, A Noite dos Mortos-Vivos era uma visão ácida de Romero sobre os Estados Unidos rachado pela guerra do Vietnã e o forte preconceito racial da época. A Noite do Terror Cego lançado em 72, por sua vez, era uma resistência contra o regime militar de Franco. Para fugir da censura ditatorial, Ossorio filmou toda a produção em Portugal. Apaixonado pelas lendas dos cavaleiros templários dos escritos de Adolfo Bécquer, o cineasta criou uma visão autoral do zumbi.

Neste período, o cinema de terror sofreu grande influência da pornografia que se encontrava em expansão na Europa. Obras como Garganta Profunda (1972) e a série Emmanuele (1974) utilizavam o sexo para atrair o público aos cinemas. Ossorio viu a possibilidade de fazer a releitura dos zumbis utilizando como narrativa temática o erotismo. Aqui a predileção do cineasta não é pela crítica social e sim pela violência e morte, discutindo a questão da sexualidade de forma obsessiva.

No filme, acompanhamos o reencontro das amigas Virginia e Betty depois de anos separadas (e a qual insinua-se através de um flashback sutil, um relacionamento lésbico no passado), e que decidem viajar de trem com Roger, amigo de Virginia. Ele, um sedutor nato, dá em cima de Betty, gerando ciúmes na outra que, com raiva, resolve descer no meio no nada indo parar nas ruínas da cidade de Berzano. O local no passado abrigou os cavaleiros templários que, depois que retornaram das cruzadas, abdicaram do cristianismo propagando o ocultismo para ter acesso a vida eterna. E é claro que eles retornarão para espalhar o terror.

Seguindo os passos de Mario Bava e Roger Corman que transformavam orçamentos modestos das produções em concepções elegantes, A Noite do Terror Cego prima pela criatividade, claustrofobia e estilo onírico – o primeiro aparecimento dos mortos cegos é primoroso graças à encenação marcante de Osorio e a macabra trilha sonora de tambores e cânticos medievais. Esta cena tornou-se não apenas marca registrada do próprio filme como das outras continuações. No geral, o primeiro filme da série é uma bela fusão de sexo e horror com altas doses do niilismo clássico de Romero  – o final pessimista e brutal, ilustra bem este ponto.


As continuações eficientes

O sucesso do primeiro filme nas bilheterias internacionais permitiu o lançamento de uma continuação logo no ano seguinte. Assim como nos filmes de Romero, O Retorno dos Mortos-Vivos (1973) não possui uma ligação direta com os acontecimentos do original, sendo uma história independente e com novos personagens. Em um vilarejo espanhol, os cavaleiros templários acusados de praticar magia negra são condenados à fogueira pelos moradores e tem seus olhos queimados. 500 anos depois, a cidade está comemorando este feito, quando é claro os mortos-vivos templários retornarão da pós-morte para se vingar.

É uma sequência eficiente, ainda que sem o brilho do original. Guarda maior proximidade com A Noite dos Mortos-Vivos em razão da sátira político-social representada na figura do governador do vilarejo que pouco está preocupado com as políticas públicas e problemas do povo. Outra semelhança é que o grupo de sobreviventes fica sitiado em uma igreja, enquanto os mortos-cegos tentam adentrar no local, situação semelhante à produção americana. É uma continuação mais convencional que não ousa tanto como o original. Tem mais violência e mortes, porém oscila no ritmo e apresenta um “Happy End” diferente do sombrio A Noite do Terror Cego.

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O Galeão Fantasma (1974), a terceira parte é o mais contraditório. É o que apresenta a melhor atmosfera de horror da série, aproximando-se dos contos góticos de Edgar Allan Poe e ao cartunesco dos desenhos de Scooby-Doo. Em compensação a história é pífia e os efeitos especiais são ruins de doer – quase uma homenagem aos “defeitos especiais” dos filmes de Ed Wood. Ossorio troca o ambiente tradicional dos vilarejos por uma premissa original que foge da repetição dos trabalhos anteriores: utiliza a lenda do galeão holandês fantasma do Século XVI como pano de fundo para os seus mortos-vivos cegos.

O empresário Howard Tucker (Jack Taylor) para fazer a publicidade de suas novas lanchas, tem a ideia de jerico de mandar duas modelos para o meio do mar, para eventualmente serem resgatadas e oferecerem o marketing do barco. Porém, elas desaparecem quando entram em contato com o galeão fantasma do título. Com medo de um escândalo e atrapalhar suas aspirações políticas, Howard junta uma equipe para resgatá-las.

A trama tosca é apenas uma desculpa para Ossorio ensaiar uma ótima atmosfera fantasmagórica. Essa exaltação de um ambiente claustrofóbico – um barco, perdido no oceano – alinhada a névoa e atmosfera escura, dá a esta terceira parte, um sentimento de inadequação e impotência dos humanos frente aos zumbis. Sem contar o charme de apresentar um horripilante (e poético) final pessimista – zumbis saindo do mar em direção a praia é algo não muito comum de se ver em obras atuais. O Galeão Fantasma funciona como eficiente exemplar de um pesadelo fantasmagórico filmado dentro de um barco.


Todo Carnaval tem o seu Fim –  A Noite das Gaivotas (1975)

A quarta e última sequência resgata a boa reputação de A Noite do Terror Cego, fechando com chave de ouro a sua tetralogia dos mortos cegos. É o segundo melhor dentro da franquia. Um médico chega a um vilarejo com sua esposa para substituir o antigo profissional. Descobre que o local esconde um terrível segredo, onde centenas de anos antes, uma ordem de cavaleiros templários realizava cerimônias de magia negra idolatrando um demônio do mar.

A boa sacada neste quarto capítulo é o enredo – a história é bem desenvolvida, superando até a do original. Além disso, adiciona-se uma bela atmosfera climática e apavorante que bebe diretamente da literatura clássica de H.P. Lovecraft. Ossorio também mantém o tom poético do filme através das cenas que ilustram os cavaleiros templários cavalgando pelas areias das praias – como se fossem arautos da morte. No geral, A Noite das Gaivotas é um horror genuíno e autêntico com fortes doses de violência e erotismo e um cenário sufocante que é captado com excelência pela câmera de Ossorio. Encerra satisfatoriamente a franquia.


A Importância dos Mortos Cegos de Ossorio – A subversão na forma do sexo e violência

Alguns podem se perguntar: por qual motivo uma série sobre mortos-cegos com elementos que beiram a podreira trash, deixou um belo legado para o cinema de zumbis? Eu diria que o primeiro motivo foi à coragem de Ossorio na época de atualizar o cinema de horror espanhol, enfrentando a vigilância moral do regime militar de Franco. Em entrevistas, Ossorio sempre foi humilde quanto seu legado ao gênero “Eu não queria inovar, apenas fazer algo diferente”. Intencionalmente ou não, o fato é que o cineasta trouxe para sua mitologia temas sociais-políticos da Espanha da década de 70 que abordavam a liberdade sexual, o fascismo, o consumismo, a repressão e até mesmo a importância do cristianismo. Levou a fórmula dos mortos-vivos a patamares diferentes.

A segunda contribuição foi de subverter o zumbinismo para o sexo e a violência. Enquanto os zumbis tradicionais são orais e carnívoros, Ossorio os transforma em seres táteis, onde devorar não é importante e sim arrastar as vítimas para o seu covil, indicando nas entrelinhas que este comportamento insinua o fascínio sobre o corpo e a carne física. Praticamente nos quatros filmes da série, todo ataque dos zumbis é precedido por um estupro físico, o indicativo que a morte está próxima. Isso representa a lógica do reprimido que Ossorio faz a alusão as vítimas do regime militar que eram capturadas pelos militares e levadas a lugares escondidos (os covis) para serem mortas – no caso das mulheres, várias sofreram violência sexual.

Essa gênese de predileção pelo erotismo associado a violência, foi uma das grandes contribuições que o cineasta deu ao cinema de fantasia ao fundir o sexo com o terror. Colocar a sexualidade como cerne principal da equação, permitiu a série discutir a liberdade sexual, a sociedade consumista e seus desejos carnais como a utopia que o regime repressivo de Franco tanto tentava negar. Não é a toa que em A Noite do Terror Cego temos o flashback – desfocado e sofisticado como uma atmosfera de sonho – que indica o relacionamento lésbico entre Betty e Virginia, bem como a tensão sexual entre elas e Roger. Este crescente sexual culmina no primeiro aparecimento dos templários-cegos no filme e que simbolicamente funciona como a consumação do “estupro coletivo” ao corpo, assim como as atrocidades realizadas pela repressão militar.

Alguns podem até dizer que o texto de Ossorio é misógino, contudo nos filmes dos Mortos-Cegos, o sexo representa mais do que isso. Diferente dos slasher movies em que a morte era uma punição para o sexo, na série dos zumbis espanhóis não há punição para o prazer sexual, afinal a própria violência já reprime o desejo, logo não há como tê-lo neste universo violento. É nele que os homens agridem, violentam e importunam as mulheres, onde a beleza e juventude são meros corpos de carnes que merecem ser deturpados. O próprio final apocalíptico com os mortos-vivos atacando um trem mostra que a ditadura não poupava da morte nem mulheres e crianças para atingir seus meios.

Por fim, a terceira contribuição de Ossorio é como ele caracteriza os seus zumbis próximos a figura clássica da morte – esqueléticos, com capuzes, tufos de barba, sem olhos, carregando espadas que parecem foices – que lembra os arautos da morte, os quatro cavaleiros do apocalipse bíblico. A sequência deles levantando das tumbas e galopando nos seus cavalos fantasmas continua até hoje como um dos momentos mais imagéticos do cinema de gênero. São os mortos-cegos que trazem inevitabilidade do fim, aquele todos nós teremos um dia na nossa vida e a representação da morte física (a do corpo) é como Ossorio pontua suas alegorias.

Foi graças a série que outros filmes exploraram esta violência de forma mais visual: Não Se Deve Profanar o Sono dos Mortos (1974) de Jorge Grau, Uvas da Morte (1978), de Jean Rollin e Zombie – A Volta dos Mortos-Vivos (1979), de Lucio Fulci utilizaram muito das temáticas da quadrilogia do diretor espanhol, ampliando o leque de obras interessantes de mortos-vivos. E se você gosta da violência visual e da caracterização grotesca e pútrida dos zumbis de The Walking Dead e Resident Evil, há muito do que agradecer ao diretor galês. Dentro da sua matéria prima barata, ele realizou uma quadrilogia assustadora e criativa que traduz nos seus zumbis, os medos e ansiedades de uma sociedade que viveu o terror da ditadura militar.