A cerimônia do Oscar em 2022 tinha tudo para sair marcada pela vitória feminina nas duas principais categorias: direção e filme. Contudo, a violência e o silenciamento de uma mulher é o que fará com que esta edição entre para os anais do não esquecimento. Aproveitando essa situação, permito-me chover no molhado para abordar a questão capilar na representação da mulher negra no mercado cultural.
Minha irmã costuma dizer que o cabelo é o principal atrativo de uma mulher. É o primeiro lugar para quem todos olham ao observar a figura feminina. Não à toa, há uma preocupação constante pelos cuidados capilares que levaram a indústria do setor a ter um crescimento de 4,6% no primeiro ano da pandemia de covid-19, atingindo R$ 23,175 bilhões, segundo informações da Euromonitor Internacional. Tais dados salientam a importância que o cabelo tem e abre margem para que discutamos como isso se relaciona a projeção da imagem e aos conceitos de pertencimento e identidade.
Uma questão de identidade
Durante muitos anos, a identidade negra foi caracterizada por fenótipos como a cor da pele escura, o cabelo crespo, os lábios grossos e o nariz curvo. A classificação de quem seria negro e quem não seria passava por tais caracterizações, ignorando a questão cultural e a ancestralidade. A identidade, contudo, deve ser entendida como um processo contínuo que perpassa por construções étnico-raciais, que resvalam em escolhas que levam a inclusão ou exclusão.
Isso ocorre porque ao posicionar-se quanto a sua negritude, em um país racista sistemático como o Brasil, uma série de desvantagens relacionadas ao preconceito acompanham o indivíduo. No cerne desta questão está o cabelo.
Lembro de uma entrevista dada por Emicida há alguns anos em que o rapper dizia que a primeira vez em que uma criança negra se percebe como tal é na escola. É a partir daí que ela nota as diferenças que sua cor de pele, e, principalmente, seu cabelo irradiam aos outros pares. O processo de exclusão social se inicia a partir deste ponto, sendo atenuado pelos conflitos com relação a sua estética que criam mecanismos capazes de resultar num bloqueio em relação a sua aceitação como sujeito negro ou, ao mesmo tempo para alguns, pode ser a alavanca que irá proporcionar uma identificação mais forte com a sua cultura, ancestralidade e identidade negra.
Dessa forma, o cabelo se torna a porta de entrada para compreensão sobre a negritude e para percepção de que a mais pessoas que passam por situações semelhante. Algo que ficou evidente em rede nacional nas últimas edições do BBB, quando Babu usou o pente como símbolo de resistência frente as fadas insensatas ou quando João foi atacado por meio de uma brincadeira feita por Rodolfo. Os dois casos foram importantes para que a questão capilar chegasse ao horário nobre da maior emissora do país e alcançasse públicos distintos, incluindo a minha turma de mestrado.
Segundo a pedagoga e ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Nilma Gomes, o cabelo é um dos elementos mais visíveis e destacados do corpo. Em todo e qualquer grupo étnico ele é tratado e manipulado, todavia a sua simbologia difere de cultura para cultura. Esse caráter universal e particular do cabelo atesta a sua importância como símbolo identitário.
Isso salienta que o cabelo é um referencial importantíssimo para a auto definição de quem é negro na sociedade brasileira. Quando uma mulher negra assume seu cabelo crespo, ela perpetua sua identidade, nega a estética branca e assume sua cultura e ancestralidade a partir da natureza de seu próprio corpo.
Sexualização via cabelo
Entre a resistência que a mulher negra enfrenta está a visão que a imagem midiática produz sobre ela. O seu retrato é de um objeto de sedução, um corpo a ser vigiado, desejado, possuído. É comum vermos representações, no cinema e na arte de forma geral, de mulheres negras sempre em situações que remetem a exploração da sua sexualidade.
Em “Olhares Negros: raça e representações”, bell hooks fala sobre como as artistas negras estão condicionadas a visão que as pessoas têm de seu corpo. Isso ocorre porque a cultura popular contemporânea absorveu o imaginário exótico da opulência do corpo negro que permeou o século XIX, coube a espectadora negra absorver esse pensamento passivamente ou combater a ele com veemência.
Ao observar as cantoras negras que fizeram sucesso no século passado, hooks nota o quanto a sexualização de seus corpos esteve presente na construção do seu processo artístico e como tal projeção envolveu, também, os seus cabelos. A iconografia sexual dada a partes específicas do corpo negro no século XIX, fixou-se no cabelo, sendo este um representante da sexualização animalesca conferida a artistas como Tina Turner, Diana Ross e (por que não?) Elza Soares.
Ironicamente muitas dessas cabeleiras eram sintéticas, construídas artificialmente da mesma forma que a imagem sexualizada que se quer evocar da mulher negra.
Todas essas colocações me fizeram pensar em Jada Pinkett Smith
O cabelo da mulher é sinal de beleza, força e identidade. Para a mulher negra, ele também tem a ver com questão étnico-racial e a valorização de outros caracteres que não sejam pontos hipersexualisados de seu corpo. O uso do cabelo crespo é um rompimento do ciclo de opressão e um símbolo de resistência ao racismo instaurado na sociedade. Logo, a perda dele é um cercear de tudo o que representa e, consequentemente, coloca suas usuárias na busca por novos ícones e referências.
Isso me faz refletir em quanto tempo não levou para que Jada Smith aceitasse sua doença e conseguisse falar sobre ela em público. Quanto tempo para que ela raspasse seus cabelos e tivesse orgulho de seu visual atual? Como sua autoestima e seu senso de pertencimento foi afetado a partir do diagnóstico? São tantos pensamentos que me assombram diante de sua expressão as palavras indelicadas de Chris Rock, que, para mim, o tapa é apenas uma consequência disso.
À situação constrangedora do Oscar se soma a representação das mulheres negras, as quais nos programas humorísticos são vistas como figuras estereotipadas, enquanto no cinema estão ausentes ou tem corpo e origem negados nas narrativas.
A piada indelicada de Chris Rock toca em lugares fortes tanto no quesito feminilidade, quanto de identidade e ancestralidade. Vinda de um homem negro, torna tudo bem mais pesado e dramático, salientando o lugar de exclusão e inclusão que cabe a mulher negra mesmo entre seus pares. Triste, mas representa o tipo de opressão e resistência que nos é imputado.