Maio é um mês carregado de afetos. Mês das noivas, do dia de Star Wars e, é claro, das mães. Curiosamente, a Marvel Studios decidiu que seria também o mês de lançamento do segundo filme do Doutor Estranho e que este contaria uma história sobre maternidade. Sim, uma história sobre uma mãe disposta a fazer qualquer coisa pelos filhos. Quando me deparei com essa premissa e os gritos animados da plateia, percebi que algo me incomodava. Conforme o filme ia avançando, o que me desagradou se tornou mais nítido: a roupagem dada a Wanda Maximoff.

Que a Marvel sempre teve problemas em desenvolver personagens femininas não é segredo. Seus filmes nem tão pouco passam no teste de Bechdel, porém, para mim, as falhas de representatividade alcançaram um novo patamar ao reduzir a personagem ao mito da mulher-mãe. Nomenclatura dada a personas cujos motivações, ações e intenções são inteiramente atreladas ao seu papel como progenitora. Ela deixa de ser uma mulher a qual uma das características é a maternidade para se tornar uma mulher-mãe.

Destaco três motivos pelos quais essa escolha não mostra ser a melhor abordagem para a introdução da Feiticeira Escarlate:

A ausência de tridimensionalidade

“Wandavision” amplificou a imagem da personagem nos mostrando um lado humano, sensível e dolorido seu.  Acompanhamos as perdas, como isso afetou a mente dela e a fragilizou. O “Multiverso da Loucura” veio para mostrar as consequências de seus atos após a série. Para fazer isso, contudo, ela foi transformada em uma vilã sem escrúpulos e cega pelo anseio de viver uma realidade paralela com os filhos. Nesse processo, o que aconteceu com a Wanda capaz de atacar o homem que amava para salvar a humanidade? Ou aquela que não se permitiu ser manipulada pelo Ultron?

Alguns dirão que foi sua reação ao luto ou que o Darkhold a dominou. Ok, isso realmente aconteceu. Os gritos e as centenas de posts “passando pano” para as atitudes dela, no entanto, mostram um outro lado: a idealização da maternidade na sociedade patriarcal. Esta faz com que qualquer atitude de uma mulher em prol de seus rebentos seja admirável aos olhos do espectador.

Uma mãe que cumpre o papel que se espera dela se torna alguém muito mais digno de nossa torcida e confiança. A trajetória escolhida para a personagem revela isso e muito mais, porque torna Wanda, uma das Vingadoras mais fortes, em uma mulher descontrolada e enlouquecida pela ausência dos filhos. Suas outras características são aniquiladas para que a maternidade assuma ser seu único traço de personalidade.

A visão patriarcal dos anseios femininos

Quando uma mulher completa certa idade ou está em um relacionamento há muito tempo, as perguntas sobre os filhos começam a surgir. Como se todo indivíduo feminino tivesse uma propensão natural à concepção. Tal visão pertence ao inconsciente e as necessidades patriarcais que constroem a mulher de uma maneira específica, revelando a ideologia que sustenta as estruturas sociais dominantes, daí provém as incômodas perguntas gestacionais. Os signos do cinema hollywoodianos estão carregados dela.

Wanda perdeu o irmão, a figura masculina que amava, e o próximo passo da personagem foi criar uma família imaginária para lidar com o luto. Para mim, esta construção é feita de forma sádica para a representação feminina, contudo, salienta o olhar social que se projeta sobre as mulheres e revela que, fazer da maternidade a parte mais importante das personagens femininas que são mães, reflete uma visão machista por parte de roteiristas e produtores.

De acordo com a professora norte-americana Ann Kaplan, a função da mulher na formação do inconsciente patriarcal é dupla: simboliza a ameaça da castração pela ausência de genitália e introduz seu filho na ordem simbólica. Ou seja, é relegado a mulher um papel menor e, constantemente, atrelada a uma criança a tiracolo. Ou duas, no caso de Maximoff.

A manutenção do olhar patriarcal

Por fim, as atribuições dadas a Wanda e o simbolismo de sua derrocada estão associados ao olhar projetado sobre as personagens femininas – moldadas de acordo com o padrão social em vigência ao ponto de incorporar a mulher ao corpo masculino. Um espelho bem refletido nos filmes do gênero que negam a mulher voz ativa e uma participação mais efetiva, sem que está esteja presa ao desejo masculino.

Ao voltar alguns filmes do MCU, é perceptível o quanto as personagens femininas só existem em função de prestar auxílio aos heróis. O feminismo transposto por elas é frágil, líquido e irreal. Um dos poucos produtos que foge desse estereótipo tem a mente feminina arquitetando o longa e é um filme de despedida. Tal qual este. Um adeus difícil para personagens que mereciam uma abordagem melhor.

Wanda é tão poderosa ao ponto de apenas ela ser capaz de se destruir. E o faz por amor aos seus filhos, coisa que só a imagem romantizada acerca da maternidade possibilita existir. Provando a máxima do mito da mulher-mãe: sua identidade é definida pela maternidade e por esta é punida constantemente.

Existe um contraponto a tudo isso?

Um tema pouco relevante para o olhar tradicional é a maternidade fora da significação masculina, ou seja, uma maternidade que fuja da sensibilização e do romantismo de que ser mãe é a melhor coisa do mundo. É preciso incursões que mostrem que mulheres que são mães também trabalham, vivem tórridos romances, arranjam brigas por questões ambiciosas e tem outras mil e uma características.

Quero assistir filmes que mostram mulheres tridimensionais com conflitos reais. Mulheres que tem vida antes dos filhos e que permanecem tendo após seu nascimento. Quero poder assistir uma anti-heroína que tem questões para além de sua identidade materna. Mães que possam ter as mesmas oportunidades que os pais, que ao perderem os filhos se tornam justiceiros e não pessoas ensandecidas.

Talvez o que falte aos roteiristas do MCU seja um pouco de Elena Ferrante e suas mães complexas, que nos fazem odiá-las e, ao mesmo tempo, nutrir empatia e identificação. Sabe por que isso acontece? Porque são mulheres reais, multifacetadas e possuem vida antes e durante a maternidade. Quero ver na ficção mães heroínas, reais e tangíveis.