Há uma ave rara em Hollywood, uma anomalia tão infrequente que vê-la se materializar na indústria de cinema mais pujante e comercial do mundo já é um evento por si mesmo: o filme autoral de grande orçamento. Autoral no sentido mais amplo do termo, de arte nascida por necessidade, porque o artista está compelido, quase obrigado pela vontade de contar aquela história, daquele jeito. Silêncio, do americano Martin Scorsese (Os Infiltrados, O Lobo de Wall Street) é esse filme.

Não é a primeira vez que o diretor faz algo assim, claro. Em diferentes momentos da carreira, com ventos mais ou menos a favor, Scorsese fez, porque precisava fazê-lo, Caminhos Perigosos (1973), Taxi Driver (1976), Touro Indomável (1980), A Última Tentação de Cristo (1988), Os Bons Companheiros (1990), A Época da Inocência (1993). Nos dois primeiros, Scorsese era um prodígio, uma revelação. O cinema americano da época, a chamada “Nova Hollywood”, pregava a derrubada das convenções medíocres dos grandes estúdios, para introduzir em seu lugar uma nova sensibilidade, um cinema mais pessoal, complexo e realista, como convinha a uma geração marcada pelo Vietnã, a Guerra Fria e a renúncia de Nixon. Nesse cenário, Caminhos e Taxi Driver impuseram-se, não só pelo talento do diretor, mas porque o tempo inspirava – pedia – esse tipo de filme. Touro Indomável, por sua vez, foi o último filme de Scorsese – ou, ao menos, o último trabalho do artista da Nova Hollywood, porque a ousadia narrativa e emocional daquela obra tinham se tornado anátema na era dos “filmes para a família”.

Scorsese empenharia a carreira outras vezes, fazendo acordos duros com os estúdios, amargando bilheterias minguadas, trabalhando por cachês irrisórios, para poder levar à tela outros testemunhos necessários de sua arte. Mas, diferentemente de seus companheiros de geração – quase nenhum dos quais ainda faz filmes, quanto mais com o mesmo vigor – Scorsese seguiu relevante, influente e popular, criando sucessos como Os Infiltrados (2006) e O Lobo de Wall Street (2013) sem trair a coerência e as preocupações de sua obra.

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Em Silêncio, adaptado de um romance do escritor japonês Shüsaku Endö, reencontramos a maior dessas preocupações: a fé. O sentimento religioso é um dado fundamental na obra do cineasta, católico “falho”, como ele costuma dizer, mas sério, alimentando, no todo ou em parte, as motivações de quase todos os seus protagonistas. Travis Bickle, de Taxi Driver, por exemplo, é um justiceiro fundamentalista, que almeja se redimir através do autossacrifício; a queda da Graça é o subtexto mais presente em Touro Indomável, Os Bons Companheiros e O Lobo de Wall Street; em A Época da Inocência, Newland Archer (Daniel Day-Lewis) impõe a si mesmo o santo martírio, para não condenar Ellen Olenska (Michelle Pfeiffer) ao opróbrio. E o que dizer das visões profundamente pessoais do diretor sobre grandes líderes religiosos, como o Jesus de A Última Tentação de Cristo, ou o Dalai Lama de Kundun (1997)?

No novo filme, Scorsese faz seu mergulho mais profundo – e corajoso – no tema, confrontando as noções de retidão, rigor e recompensa da religião católica com a realidade, extremamente palpável e visceral, da violência. Vale avisar que é um mergulho sem alívios – as cenas de tortura dos cristãos japoneses e europeus são constantes, e tanto mais aflitivas porque filmadas à distância, reproduzindo o ponto de vista dos protagonistas, ou porque delas só ouvimos o som dos gritos, dos afogamentos, do crepitar da carne. Quando o silêncio chega, é porque se está morto.

Na trama, ambientada no século XVII, dois jesuítas portugueses, os padres Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield, de O Espetacular Homem-Aranha) e Francisco Garupe (Adam Driver, de Star Wars: O Despertar da Força), vão ao Japão para descobrir o paradeiro de outro missionário, o padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson, da série Busca Implacável). Ferreira está desaparecido há alguns anos, supostamente após ter cometido apostasia [renúncia pública da própria fé]. O início do filme flagra o religioso diante de uma visão intolerável: outros missionários sendo torturados, de forma lenta e implacável, pelos perseguidores japoneses. Tudo o que é preciso para acabar com o sofrimento deles, alguém lhe diz, é cometer o ato simbólico – e irrisório – de pisar numa imagem de Cristo.

Esse dilema é a base de todo o filme. É justo – e moral – permitir que, em fidelidade à própria crença, outras pessoas sejam torturadas e mortas? Como pode a presença dos padres católicos, tão aguardada pelos sofridos cristãos japoneses, resultar apenas em perseguições, sofrimento e morte? Por que Deus não se manifesta ante tamanhas provações? Ele é indiferente à dor e ao sofrimento humanos? Ele não ama seus filhos? Tamanho sofrimento é a prova de fé desejada por Deus, como Este teria exigido a Jó? O que fazer: renegar Cristo para aliviar o sofrimento dos fiéis, ou ser um cristão exemplar e inspirador – e assim provocar suas mortes? São as perguntas a que Ferreira – e, mais adiante no filme, Rodrigues – são obrigados a responder. Mas qual seria a resposta, a verdadeira resposta, para Deus?

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O roteiro primoroso de Jay Cocks (de A Época da Inocência, Gangues de Nova York e – quem diria! – Titanic) e do próprio Scorsese não tem as respostas definitivas para essas perguntas, tão vastas e imponderáveis quanto os mistérios da fé. Quem poderia ter? Em vez disso, Silêncio oferece ideias, sentimentos e sensações, a fim de deixar o espectador ponderar por si próprio, e chegar às suas próprias conclusões. A verdadeira “descoberta”, ou revelação, de Silêncio, está na jornada. Não sei de outro filme que tenha tanto a dizer sobre religião, seja esta a católica, a budista, ou qualquer outra. Para o bem e para o mal. O sentimento de transcendência, a alegria abundante do padre Rodrigues ante uma visão de Cristo num lago, a devoção tocante dos cristãos japoneses, são contrapostos à perseguição terrível, ao sofrimento injustificável de tantos fiéis pela obediência aos dogmas, à lealdade suicida a um ideal intangível e talvez inexistente. E, apesar da formação católica de Scorsese e da evidente admiração deste pelos estoicos cristãos japoneses, o filme tem o cuidado de dar voz ao outro lado, de permitir que o “Inquisidor” budista, o samurai Inoue Masashige (Issey Ogata) explique as razões para não querer ver o cristianismo se espalhar pelo país, entre as quais o uso da religião como forma de dominação cultural e econômica por potências europeias, que ambicionam conquistar o Japão.

Em meio a tudo isso, um verdadeiro banquete cinéfilo, com as atuações irretocáveis de Neeson, Driver, Ogata, de Yösuke Kobuzoka (como o pitoresco Kichijiro, que começa o filme como uma figura quase cômica para se tornar um de seus personagens mais complexos e insondáveis) e, sobretudo, Garfield. Ainda não vi Até o Último Homem, parceria com Mel Gibson que o levou a ser indicado o Oscar de Melhor Ator, mas duvido que seja um trabalho tão poderoso e multifacetado como este aqui. A edição de som, que constrói a trilha angustiante do filme a partir de ruídos da natureza e dos sons das torturas e assassinatos, é um primor, assim como a fotografia do mexicano Rodrigo Prieto, indicada ao Oscar.

E ainda há a história da produção do filme: apaixonado pelo livro desde que o leu pela primeira vez, em 1988 (o romance foi escrito em 1966), não coincidentemente logo após as filmagens de A Última Tentação de Cristo, Scorsese comprou os direitos de filmagem, mas as incertezas sobre sua carreira, na época, e o próprio desinteresse dos grandes estúdios por filmar uma história tão brutal, densa e cara (o filme atual foi realizado com “apenas” 40 milhões de dólares, mas só porque o diretor, os atores e a equipe técnica trabalharam por tabela, com cachês simbólicos) obrigaram o diretor a amargar quase três décadas em busca de financiamento. Os grandes sucessos de Ilha do Medo (2010), A Invenção de Hugo Cabret (2011) e O Lobo de Wall Street foram as armas de Scorsese para conquistar o sinal verde da produção, mas o artista, ainda assim, foi obrigado a se impor, recusando-se a dirigir qualquer outro trabalho enquanto não pudesse fazer Silêncio.  Como em seus filmes mais resolutamente pessoais – Touro Indomável, A Última Tentação de Cristo, A Época da Inocência, o trabalho mais poderoso de Scorsese antes deste aqui – a bilheteria foi um fracasso. Mas a história do cinema – e, possivelmente, você, leitor – há de fazer triunfar a visão sublime do artista.