As capacidades metafóricas e alegóricas do cinema de terror sempre estiveram presente no gênero desde o começo da Sétima Arte. O terror é uma forma de explicar o inexplicável e tornar acessíveis medos e emoções que dominam o ser humano desde o início dos tempos.

Pena que muita gente só descobriu isso há pouco tempo, afinal, estamos vendo youtubers e influencers ganhando a vida “explicando” os significados e metáforas por trás dos filmes – especialmente de terror, porque se há um gênero que as pessoas precisam de algo a mais para realmente apreciarem sem se sentirem culpadas ou envergonhadas, é esse.

Mas divago… O fato é que, em alguns filmes, a metáfora é clara a ponto de não ser possível dúvidas sobre a motivação dos cineastas por trás das suas histórias. O Conde, novo filme do chileno Pablo Larraín, mesmo diretor de No (2012), “Jackie” (2016) e “Spencer” (2021), é um desses: aqui, ele revisita um enorme trauma da história do seu país, os anos de ditadura militar sob comando do general Augusto Pinochet (1915-2006), pelas lentes do horror e de um humor bizarro, mas irresistível. No filme, Larraín se pergunta: e se Pinochet tivesse sido um vampiro?

Na trama criada por Larraín e o roteirista Guillermo Calderón, vemos que Pinochet, na verdade, nasceu como Pinoche, e é um vampiro de mais de 200 anos que bebeu sangue durante a Revolução Francesa. Depois se mudou para a América do Sul, alistou-se e assumiu o poder no Chile em 1973, até ser deposto. Após fingir sua morte, encontra-se idoso (vivido por Jaime Vadell). Ele reúne seus familiares para comunicar que deseja morrer porque está de saco cheio de ser chamado de ladrão – mas não de assassino – pelo governo “comunista”, e por não aguentar mais a vida eterna. E a família dele mal pode esperar que morra para dividir a herança roubada da riqueza do Chile durante o período de ditadura.

Mas será que Pinochet está cansado mesmo? Quando uma freira (Paula Luchsinger), com motivos ocultos, chega à ilha onde ele e família estão reunidos, o Conde pode acabar recuperando o gosto por sangue, porque afinal parece que o Mal (e o fascismo) nunca morrem…

MALUQUICE ÁCIDA

A ditadura chilena durou de 1973 a 1990 e, hoje, é reconhecida como uma das mais sangrentas da América do Sul. O Conde não esconde as intenções satíricas e alegóricas: quando vemos o vampiro Pinochet flutuando com sua capa por sobre a capital Santiago, como se fosse o Batman, o diretor cria uma imagem que, além de forte, evoca a noção de como os ideais do fascismo permanecem vivos no continente.

Larraín também aproveita para lançar mão dos clichês do vampirismo de forma criativa, a começar com o trabalho excepcional de fotografia de Edward Lachman. O preto-e-branco, claro, remete a outros filmes antigos de vampiro, mas a cinematografia até se transforma, usando cores fortes em um momento perto do final. E há o servo do vampiro, a luta para matá-lo e alguns momentos de sensualidade, tudo temperado pela ironia fina do roteiro.

Em meio ao cenário de uma ilha, que até lembra outro filme de Larraín, o ótimo O Clube (2015), o diretor ainda extrai boas atuações do elenco e, acima de tudo, faz o público rir: O Conde é muito engraçado para quem embarca na ideia e abraça as tiradas satíricas do roteiro. Na última meia hora, então, o filme meio que enlouquece, trazendo uma reviravolta e até mesmo uma participação bem especial na história, e que de quebra explica o porquê de o filme ter uma narração em inglês, e a razão pela qual o Conde tem uma preferência por sangue britânico…

Mas essa loucura acaba contribuindo para a experiência; é uma maluquice que deixa o filme mais imprevisível e, porque não, ainda mais ácido. Na verdade, são fatos históricos que dão suporte à alegoria: o verdadeiro Pinochet exigia ser chamado pelo apelido de Conde, e a capa da sua farda militar já trazia uma sugestão vampiresca. E com certeza há outros vampiros políticos espalhados por aí…

Essa é a força da alegoria do filme e, que mais uma vez, demonstra como a fantasia e o horror servem para tentar fazer sentido de uma realidade sempre horripilante. Em O Conde, Larraín e seus colaboradores criam uma experiência diferente, uma que talvez não agrade a todos, mas que segue as próprias regras e traz uma visão bem clara. Às vezes, só uma metáfora mesmo é capaz de nos fazer compreender uma figura como Pinochet, e neste caso, ainda bem, ela é tão clara e viva que nenhum youtuber vai precisar vir explicar depois. Em tempos de pós-horror e toda essa conversa pretensiosa e elitista sobre cinema, isso é muito bem-vindo…