É um assunto paradoxal: ao mesmo tempo em que a saúde mental é, como deve ser, discutida em épocas específicas do ano, como o Setembro Amarelo, tratar de tais temáticas é um desafio que dificilmente veículos de comunicação conseguem enfrentar com a delicadeza devida. Espero conseguir.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em dados de 2018, o suicídio é a segunda causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos. E são exatamente os jovens os protagonistas das obras escolhidas para tratar do tema aqui na coluna: “A Elegância do Ouriço” (2006) e “A pequena loja de suicídios” (2012).

Também foram escolhidas por irem completamente à contramão do que pregam outros produtos que tratam da mesma temática, como a badalada e extremamente equivocada série “13 Reasons Why” (Netflix) que, apesar de ter cumprido alguma função de conscientização, o fez de forma cruel, baseando-se em determinar culpados. “A Elegância do Ouriço” e “A pequena loja de suicídios”, por sua vez, apostam na jornada contrária: a de trazer de volta à vida aqueles já decididos de que nada vale a pena.

Um bichinho terrivelmente elegante

Quando comprei esse livro, o que me chamou atenção foi a linda capa da edição brasileira, de 2010, de autoria de Kiko Farkas e Elisa Cardoso. Julguei pela capa e não me arrependi: “A Elegância do Ouriço” é um dos meus livros favoritos até hoje.

Li no inicio da minha adolescência. Na verdade, era uns poucos anos mais velha que Paloma Josse, uma das protagonistas. Mas não acho que seja um livro imediatamente fácil. Escrito pela marroquina radicada na França, Muriel Barbery, “A Elegância do Ouriço” foi um best-seller no ano de seu lançamento, embora eu realmente ache que a obra não tem o reconhecimento que merece.

A história se passa em Paris, em um condomínio de classe alta e em um bairro de classe altíssima, com um rol de moradores tão esnobes quanto ricos. Paloma tem 12 anos, é filha de um político e uma socialite e está decidida a incendiar sua casa e cometer suicídio no dia de seu aniversário de 13 anos. Extremamente inteligente e rebelde, Paloma tem uma relação ruim com o resto da família, que considera fútil ao extremo.

“A Elegância do Ouriço” se desenrola a partir da relação entre Paloma e a zeladora do prédio, Renée Michel. Considerada pelos moradores como carrancuda ou, simplesmente, dadas as características preconceituosas que regem o condomínio, como um ser insignificante ao qual ninguém presta atenção. Renée, por sua vez, usa o cancelamento do qual é vítima para isolar-se do mundo, principalmente do mundo dos moradores, e manter uma vida altamente intelectualizada dentro de seus aposentos de empregada.

As duas protagonistas mantém diários e correspondências entre si, criando uma amizade improvável e que mergulha cada vez mais profundo em suas histórias de vida, justificando o gênero de drama filosófico da obra. O livro ganhou uma adaptação para o cinema em 2009, dirigido por Mona Achache e produzido pela Pathé.


O menino que nasce feliz

Com um tom satírico quase oposto à delicadeza da obra de Barbery, “A Pequena Loja de Suicídios” (2012) é um filme animado francês dirigido por Patrice Leconte. Depois de já ter assistido ao filme algumas vezes, ainda encontro pessoas ultrajadas com a ideia de um desenho animado – que tais pessoas remetem imediata e tão somente ao público infantil – que fale sobre suicídio. Todas as vezes, fui obrigada a perguntar se haviam assistido ao filme e sempre ouvia a mesma resposta negativa.

Pois bem, é fato que não é um filme lá muito infantil: algumas falas e ações são bem indigestas, como o próprio fato de que é uma família que lucra a partir da venda de artigos para suicídios. Mas suas polêmicas não são feitas em vão. E, cá entre nós, ainda é melhor que produtos que se vendem como empáticos para o público infanto-juvenil, mas vendem culpabilização como “solução” do problema.

Tudo se passa em uma cidade, ou um mundo não tão distante ou apocalíptico assim, em que todos parecem sofrer de depressão e o cinza é a cor dominante das roupas, do céu e das paisagens. No início do filme, inclusive, a única parte colorida é exatamente a loja da família Tuvache, composta pelo pai, Mishima, a mãe, Lucrèce, e, até então, um filho e uma filha adolescentes, Alan e Marilyn. Todos sonham em morrer e discutem a melhor maneira de fazê-lo.

A reviravolta é a terceira gravidez de Lucrèce. Ao ver o filme, é possível até se perguntar como um ambiente tão estéril poderia ser minimamente adequado à ideia de uma gravidez. Para completar, o bebê, Vincent, nasce feliz, o que causa estranheza em todos à sua volta, e repulsa nos pais. Apesar de tudo, Vincent é uma espécie de Pollyanna necessária, chegando até a conversar com clientes da loja de seus pais para que desistissem de pôr fim à vida. O filme, um musical, a partir de então, conta o processo de como a alegria do menino feliz se espalha pela cidade.

Trazer a vida de volta

Considero que o papel a ser desempenhado por narrativas que abordem direta ou indiretamente o suicídio, depressão e outras doenças mentais seja o de inspirar pessoas em situações difíceis a encontrar motivações para viver. Infelizmente, não é o que acontece nos produtos mais famosos ligados à temática, que parecem mais preocupados em apontar razões para a morte de seus personagens e explicá-las, em um detalhamento muitas vezes sórdido, para o público.

Tanto “A Elegância do Ouriço” quanto “A Pequena Loja de Suicídios” começam em um ponto no qual tudo já parece ser um caso perdido. Paloma, aos doze anos, estava decidida a incendiar sua casa e morrer em seguida; Renée, acostumou-se a ser ignorada e privou o mundo de seus pensamentos; a família Tuvache, em um mundo depressivo, tinha o negócio mais lucrativo possível. Por mais decidido que tudo parecesse, nada permanece. Nada era imutável.

Além do mais, Renée e Vincent, aqueles que não pensam em suicídio, são os dois que, na maior parte de suas vidas, não foram ouvidos por muitos a seu redor. E, no entanto, sua busca constante por algum tipo de satisfação e felicidade é o que os mantém sãos em meio ao caos. São narrativas de um processo de enxergar felicidade em meio à tristeza e à melancolia generalizada. As obras não apresentam o mundo como completamente doce ou amargo, mas buscam encontrar a beleza em uma vida agridoce.