Não sou fã de filmes de terror. Tenho dificuldade demais em me deixar envolver pela história e facilidade demais para dar gritos de susto na sala de cinema. Aceitei que não é para mim. Assistir a Corra! foi uma exceção. Uma exceção que tanto adorei ter feito que me fidelizei a Jordan Peele e corri pra assistir Nós. Passei o filme inteiro pensando até que ponto se tratava de uma metáfora e, se sim, sobre o que a tal metáfora poderia estar falando.

O filme flutua entre significações sociais e introspectivas de uma forma que me lembrou Capitães de Areia, de Jorge Amado. Além dessas significações, é possível ver paralelos entre seus enredos, principalmente no que considero o tema central das tramas: a desigualdade social, que acaba por tanger, principalmente, questões relativas ao racismo.

As crianças do trapiche

Muito cobrado em vestibulares e provas pelo Brasil, Capitães da Areia é um romance de Jorge Amado, escrito na década de 1930 e normalmente categorizado como parte da segunda geração do Modernismo brasileiro, focado em contar narrativas regionalistas. A história do livro se passa em Salvador, na Bahia, e é centrada nas vidas de meninos de rua acusados de cometer vários delitos pela cidade.

O grupo de meninos com idades entre a infância e começo da adolescência vive em um trapiche abandonado na beira da praia. A obra começa com a apresentação de uma série de reportagens, notas e depoimentos sobre a atuação do grupo entre habitantes da cidade, que pediam a prisão de seus membros. As opiniões, regadas a muito ódio, se dividem sobre qual punição seria mais eficaz e quem deveria aplicá-la. Nada diferente do que se poderia ver hoje.

Formado por dezenas de crianças, apenas alguns personagens têm suas histórias aprofundadas, sendo principalmente: Pedro Bala, líder, Professor, o único que sabia ler, Sem Pernas, que ficou manco após ser espancado, Gato e Volta Seca, além de Dora, a única menina a participar do grupo. O romance conta as histórias individuais dos personagens, mostrando suas fragilidades emocionais em contraste com suas investidas violentas como forma de sobreviver em uma sociedade que não os queria vivos.

As sombras nos esgotos

Nós, por sua vez, começa na década de 1980, com algumas de reportagens de televisão e com a história de Adelaide, uma menina que, depois de se perder dos pais durante um passeio na praia, volta para casa em estado de choque. Anos mais tarde, depois de casar e ter dois filhos, volta à praia na qual se perdeu na infância. No decorrer do filme, as pessoas são atacadas e mortas por criaturas vindas dos esgotos. Tais criaturas são idênticas aos seus correspondentes no mundo da superfície e têm como principal objetivo o “desacorrentamento”, ou seja, livrar-se de seus correspondentes que vêem a luz do sol.

Diferentemente de Corra!, não considero que o principal foco da narrativa de Peele tenha sido o racismo, e sim a desigualdade econômica como um todo, como disse mais acima. Obviamente, a escolha de um elenco principal formado por atores e atrizes negros, já tange a questão no que diz respeito à representatividade, mas ainda sim não aparece como foco principal da narrativa. E, ao negar o racismo como tema principal do filme, não tenho pretensão de tirar sua importância nas discussões sobre o enredo.

Um exemplo possível é que, mesmo havendo o contraponto entre a família negra e a branca, “Nós” parece focar muito mais na diferença de classe social entre elas, ironizando-a em piadas. Enquanto a família de Adelaide (Lupita Nyong’o) parece ser de classe média, a de Kitty (Elizabeth Moss), branca, tem uma casa extremamente luxuosa. Ainda que tal diferenciação econômica tenha no racismo uma possível causa, não parece ser um ponto fundamental abordado no filme.

Esgoto, trapiche e marginalização

E é na questão da desigualdade social que considero haver maiores paralelos entre as duas obras. Capitães da Areia poderia ter sido escrito nos dias de hoje, em meio a debates sobre diminuição da maioridade penal, superlotação carcerária e governo que legitima o discurso de que direitos humanos seriam uma pauta partidária. Do mesmo modo, Nós não perde a oportunidade de criticar visões de extrema-direita com um monólogo-manifesto sobre a matança como uma missão de deus e por uma América melhor.

Salvador é dividida em cidade alta, área com renda per capita maior, e cidade baixa, com bairros mais pobres. O trapiche das crianças fica ao nível do mar, o que simbolizaria o mais baixo que se poderia chegar nessa hierarquia do espaço geográfico. As sombras, em Nós, vêm dos esgotos, que também tendem a ser considerados os espaços mais insalubres do espaço urbano. É desses espaços “baixos” que vêm aqueles que atacam aqueles que têm uma vida comum.

Tanto “Nós” quanto “Capitães da Areia” são narrativas sobre o desespero de sobrevivência de grupos postos à margem em despeito às suas similaridades com seus iguais. As crianças do trapiche, ao mesmo tempo que assaltavam, também invejavam crianças da cidade alta por terem famílias, casa e comida. Além de um tratamento minimamente humano do qual simplesmente foram estimulados a acreditar que não mereciam. O mesmo acontece com os doppelgänger: criadas à similaridade de um outro, tinham que se contentar a uma vida como experiências não finalizadas, cujo o único propósito é seguir aqueles que, por algum motivo, tiveram direito a uma vida digna.