“Os dias e anos à frente valerão a pena serem vividos. Um dia o Homem vai aprender a controlar forças incríveis, energias que poderão nos levar a outros mundos em algum tipo de nave. E os homens que forem ao espaço vão conseguir achar meios de alimentar os milhões de famintos do mundo e curar suas doenças. Eles vão poder dar esperança a cada um e um futuro comum, e esses serão dias que valerão a pena serem vividos”.

No clássico episódio “A Cidade à Beira da Eternidade” da Jornada nas Estrelas (Star Trek) original, o Capitão James Kirk (William Shatner) e o Sr. Spock (Leonard Nimoy), os dois oficiais comandantes da nave Enterprise, viajam no tempo até a era da Grande Depressão americana para corrigir um erro que destruiu o futuro e conhecem a assistente social Edith Keeler. É ela quem recita o monólogo que abre este texto, e que de certa forma sintetiza a essência do conceito de Star Trek, o da esperança. Faz 50 anos que a série original criada por Gene Roddenberry (1921-1991) estreou na TV e, de lá para cá, ela se tornou um fenômeno da cultura pop que inspirou outros seriados, totalizando mais de 700 episódios, e uma franquia de cinema que já rendeu treze (!) longas-metragens até o momento. Muita gente virou cientista por causa dela, e algumas traquitanas vistas nos episódios até inspiraram aparelhos do nosso dia a dia. E embora Star Trek tenha sido dada como morta algumas vezes nestes 50 anos, sempre conseguiu ressurgir. Como? Talvez a ideia da esperança tenha algo a ver com isso.

Uma coisa é certa: esses anos não foram fáceis. Quando “A Cidade”… foi ao ar, era 1967 e Jornada estava chegando ao fim da sua primeira temporada – a estreia da série ocorreu alguns meses antes, em 8 de setembro de 1966. Os índices de audiência não eram expressivos e sempre pairava no ar a ameaça de cancelamento, o que de fato acabou acontecendo em 1969, ao final da terceira temporada. Na abertura da série, a narração triunfante do Capitão Kirk dizia que a Enterprise estava numa “missão de cinco anos” pelo espaço, “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”. No entanto, os telespectadores só viram mesmo três anos dessa viagem.

Mesmo assim, nesta curta vida a ideia do produtor de TV e roteirista Roddenberry deixou marcas. Em meio aos tumultuados anos 1960, cheios de conflitos políticos, raciais e com a Guerra Fria ameaçando destruir a Humanidade, Roddenberry colocou no ar um programa com personagens de várias etnias – na equipe da Enterprise havia uma mulher negra, um japonês e até um russo! – e nas tramas dos episódios, os heróis frequentemente se envolviam com problemas futuristas que tinham a ver com problemas do presente, abordados num contexto de ficção-científica. O programa tinha um conceito simples – nave viaja pelo universo, vivendo uma aventura por semana – mas, como muitas ideias simples, possuía complexidade e riqueza suficientes para lhe permitir voar, e ser adaptado para o cinema, livros, HQs, games…

Porém, Jornada não era sempre sério. Alguns dos episódios eram aventuras, outros eram comédias. O espectador podia sempre contar que Kirk ia se enroscar com gatas alienígenas – às vezes, elas usavam trajes sumários – e que os tripulantes de camisa vermelha iriam morrer. Às vezes coisas malucas aconteciam – eram os anos 1960, afinal de contas! Às vezes havia episódios ruins, beirando o trash. Mas essa é a realidade da televisão episódica: nem sempre se consegue acertar. Mas quando eles acertavam… Saía um “A Cidade à Beira da Eternidade”, considerado o melhor episódio da Série Clássica. E esse foi apenas um dos grandes episódios que eles produziram, e que ainda se sustentam frente à produção televisiva de hoje. E não vale nem reclamar dos efeitos especiais, pois recentemente eles foram remasterizados e refeitos.

Mas a coisa mais curiosa a respeito de Star Trek veio depois do cancelamento em 1969. Com as reprises na TV a partir dos anos 1970, a série que parecia destinada ao esquecimento virou um fenômeno mundial. Os atores passaram a se tornar indissociáveis dos seus personagens e até forneceram suas vozes para a breve Série Animada de Jornada, produzida entre 1973 e 1974. Roddenberry virou guru new age e dava palestras sobre sua visão do futuro, enquanto tentava ressuscitar sua criação. Mas o estúdio Paramount Pictures só se animou mesmo em retomar a jornada quando Star Wars: Uma Nova Esperança (1977) de George Lucas arrebentou nas bilheterias. Assim nasceu a franquia de cinema de Star Trek: o primeiro exemplar, Jornada nas Estrelas: O Filme (1979) com Roddenberry como produtor e Robert Wise, de A Noviça Rebelde (1965) na direção, teve uma produção tumultuada e acabou resultando num filme apenas mediano. Mas fez sucesso nas bilheterias, e a saga prosseguiu.

Nos anos 1980 os filmes seguintes, sem o envolvimento de Roddenberry e ainda com o elenco clássico, fizeram muito dinheiro para o estúdio. Foram aventuras que marcaram a década até para quem não conhecia a série de TV, como Jornada nas Estrelas 2: A Ira de Khan (1982), dirigido por Nicholas Meyer e até hoje o melhor da franquia; e Jornada nas Estrelas 4: A Volta para Casa (1986), dirigido por Nimoy e que se tornou na época o maior sucesso comercial da marca. Vendo o sucesso dos filmes do cinema, a Paramount chamou Roddenberry de volta para a TV, e o resultado foi Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, iniciada em 1987 e que mostrou as aventuras de uma nova Enterprise, 100 anos depois de Kirk e Spock, agora sob o comando do Capitão Jean-Luc Picard (Patrick Stewart).

Diferente da sua predecessora, A Nova Geração foi um grande sucesso de audiência do começo até o seu fim, em 1994. Era uma Jornada reformulada, adaptada para os espectadores modernos, e que apesar de um primeiro ano fraco, conseguiu se estabelecer e até formar a sua própria legião de fãs – ainda hoje rolam debates sobre qual das séries foi melhor, a velha ou a nova, e qual foi o melhor capitão, Kirk ou Picard. A Nova Geração foi até indicada ao Emmy de Melhor Série em Drama pela sua última temporada, e se encerrou com um dos mais queridos episódios finais que a TV já viu.

Enquanto o elenco clássico se despedia com um ótimo e derradeiro filme – Jornada nas Estrelas 6: A Terra Desconhecida (1991) – e a Nova Geração fazia sucesso na telinha, Gene Roddenberry faleceu. Mas a Jornada não parou: seguindo os passos da Nova Geração, outras séries surgiram. Primeiro veio a mais sombria e melhor de todas as encarnações televisivas da franquia, Deep Space Nine (1993-1999) – com seus muitos personagens, intrigas políticas e longos arcos, era o Game of Thrones do universo Trek. Depois veio a mediana Voyager (1995-2001), porém marcante por trazer no seu centro uma mulher no comando, a Capitão Janeway vivida pela atriz Kate Mulgrew. Já DS9 tinha como protagonista um ator negro, Avery Brooks como Capitão Sisko. Diversidade sempre esteve presente na franquia.

E bem antes da Marvel aparecer no cinema, Jornada já fazia a coisa do universo compartilhado, integrando acontecimentos da telinha e da tela grande: por exemplo, Spock e outros personagens clássicos apareceram na Nova Geração, e eventos e elementos de DS9 e Voyager foram integrados e/ou mencionados em filmes posteriores para o cinema.

Que filmes foram esses? Ora, a tripulação da Nova Geração também migrou para a tela grande. Stewart e companhia estrelaram quatro filmes, mas apenas um foi indiscutivelmente bom: Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato (1996). Este longa, e o final de DS9 na TV, representaram os últimos grandes momentos da saga por um bom tempo. As bilheterias no cinema foram diminuindo aos poucos, e na sua última série televisiva a jornada começou a olhar para trás com uma prequel, Enterprise (2001-2005), ambientada um século antes da Série Clássica. Enterprise não empolgou – apesar de ter melhorado na sua temporada final – e foi cancelada pelo desinteresse do público.

Mas era mais um caso de cansaço da marca, e menos de desinteresse. Depois de alguns anos na geladeira, a Paramount ressuscitou a franquia ao entregá-la nas mãos do cineasta J. J. Abrams, que dirigiu Star Trek (2009), uma produção com orçamento bem maior do que a franquia havia tido até então, um ótimo e jovem elenco para reviver os clássicos personagens, e o tom equilibrado entre afeto pela velha Jornada e disposição para inovar. Alguns problemas de roteiro aparecem aqui e ali, assim como na sequência, Além da Escuridão: Star Trek (2013), mas ambos os filmes são bastante divertidos e mantiveram a marca viva na mente do público com grandes aventuras. Agora a franquia lança um novo filme (Sem Fronteiras) e se prepara para voltar à TV com uma nova série, Discovery, a ser exibida via Netflix em 2017. A realidade econômica do cinema dita que os filmes de Star Trek precisam ser aventuras. Mas a alma Trek está na telinha, lá é onde ela pode ser usada como instrumento para se contar todo tipo de histórias. Por isso uma nova série, feita no estilo das produções televisivas atuais, é motivo de comemoração.

Mas mesmo nos episódios e filmes com muitos tiros de feiser e batalhas espaciais, a franquia sempre teve um viés humanista. As melhores histórias de Star Trek são aquelas que dizem algo sobre a humanidade, e elas podem vir na forma de dramas de tribunal, de comédias malucas, de dilemas éticos ou até de conflitos contra Klingons ou Borgs. Surpreendentemente, a visão de Roddenberry se manteve, entre os altos e baixos, e os roteiristas, diretores e produtores que trabalharam na franquia por todos esses anos às vezes até se desviaram dela, mas nunca a desrespeitaram. Na ficção-científica, a tônica é o futuro sombrio. Star Trek é uma exceção por mostrar um futuro positivo. Aos que consideram essa visão muito idealizada, vale lembrar que a própria mitologia de Star Trek mostra que a Humanidade vai sofrer muito para chegar lá. Em “A Cidade”… , Kirk precisa deixar Edith morrer para que seu futuro volte ao normal. Vai ser duro, vai ser difícil, vamos passar por guerras e conflitos, mas vai haver um amanhã melhor, nós podemos ser melhores – essa é a mensagem de Star Trek.

Essa mensagem se torna ainda mais oportuna numa época de Donald Trumps, refugiados, terrorismo e conflitos políticos aqui e lá fora. Estamos ainda muito distantes do futuro imaginado na ficção, mas se Star Trek serviu para alguma coisa nesses 50 anos além de entreter, foi para representar um farol. Um farol que aponta para um futuro possível no qual as nossas diferenças serão uma força a nosso favor, ao invés de características que nos separam. Idealismo? Provavelmente. Em todo caso, o fenômeno Star Trek deixou (e ainda deixa) sua marca ao nos lembrar de que “a aventura humana está apenas começando”…

Arte: netcombo