Há muita iconografia da morte em 007 Contra Spectre. A sequência de abertura, tradicionalmente um momento especial e cheio de ação dentro da franquia do agente James Bond, aqui se passa no Dia dos Mortos mexicano. O próprio Bond se disfarça de esqueleto na cerimônia. Na sequência de créditos logo após – ao som da canção de velório do tristonho Sam Smith – aparecem imagens dos filmes anteriores da era Daniel Craig da franquia, e vários personagens que já morreram, aliados e inimigos, despertam lembranças. Outro importante momento mais à frente ocorre num velório. Há muita conversa sobre pessoas mortas voltando à vida, sobre eras passadas e como espiões estão morrendo e não importam mais, e vemos ruínas desse passado.

Todas essas imagens quase góticas remetendo à morte e à finitude são apropriadas, pois este capítulo, dirigido pelo mesmo Sam Mendes que comandou o muito bom e grande sucesso (mas também um pouco superestimado) 007: Operação Skyfall (2012), ressuscita um espírito que a franquia de James Bond havia meio que colocado em hiato nestes últimos anos. Spectre traz de volta o humor, alguns dos exageros e muitos elementos familiares da franquia. Realmente parece um filme “das antigas” do agente 007, bem mais do que os anteriores estrelados por Craig. Mas essa ressuscitação tem um preço: o de deixar o filme muito superficial, mesmo tolo em alguns momentos, praticamente apenas um exercício de estilo que interrompe a sua história a cada 10 ou 15 minutos para repassar a “lista de clichês” da franquia e trazer à tona um novo item.

A trama de Spectre se passa pouco depois de Skyfall. A já referida investida de Bond (um Craig mais relaxado, mais velho e até brincalhão em alguns momentos) no México, e uma mensagem de além-túmulo de um conhecido o colocam no caminho de uma terrível organização, a SPECTRE do título, e seu líder, o misterioso Oberhauser (Christoph Waltz). No caminho, como sempre Bond vai encontrar algumas belas mulheres – sendo a mais marcante a doutora Madeleine Swann (Léa Seydoux) – e vai usar o seu supercarro de forma irônica, um raro momento de subversão de um clichê da série. Além disso, vai também viajar meio mundo, num catálogo de locações que lembra o criticado 007: Quantum of Solace (2008), reconhecidamente a única real bola-fora até agora da era Craig.

É curioso mencionar Quantum, porque Spectre até parece, em alguns momentos, um remake da decepcionante segunda aventura de Craig no papel. Afinal, além do grande número de locações, Spectre também se inicia relativamente perto do final do seu predecessor, e uma ponta solta do filme de 2008 é finalmente resolvida aqui. Até a “fortaleza do vilão”, outro clichê da franquia, se situa num deserto, igual a Quantum. E como em Quantum, as cenas de ação e o passeio ao redor do mundo servem para distrair o espectador do fato de que, na verdade, não há muita história para sustentar o seu interesse. Bond basicamente viaja de um ponto de trama a outro, encontrando personagens rasos no caminho – a pobre Monica Belucci é subutilizada num papel que o roteiro nem se preocupa em definir. O filme se torna inchado, e com quase duas horas e meia de duração, a tensão do inicio se dissipa.

Mesmo assim, toda essa movimentação rende um filme ao menos divertido, com alguns momentos de brilhantismo aqui e ali. Afinal, Spectre abre de forma sensacional num grande plano-sequência com milhares de figurantes e uma câmera dinâmica que percorre vários ambientes, dando-se até ao luxo de incluir uma piadinha com Bond – de terno por baixo da fantasia da Morte. É o tipo de floreio cinematográfico que a franquia quase nunca se permitiu antes. O trabalho de fotografia de Hoyte van Hoytema é incrível, especialmente nas cenas envolvendo a organização SPECTRE, nas quais as sombras e a própria influência do cinema noir é levada ao limite. E há muitas cenas de ação, e embora algumas decepcionem na execução (a luta no helicóptero no início vai se perdendo com o tempo), a melhor delas é mesmo a intensa luta no trem entre Bond e o capanga silencioso Mr. Hinx (Dave Bautista, que com seu físico e intensidade acaba sendo uma das melhores coisas do filme).

Toda essa sequência no trem, porém, acaba expondo a principal intenção por trás do projeto. Mendes e sua equipe aqui querem se divertir, depois de toda a preparação e seriedade dos anteriores, com os típicos elementos dos filmes de James Bond. Mas não há nenhuma intenção de inovar com esses elementos, e há mesmo uma displicência ao lidar com eles, que muitas vezes parecem jogados no filme: antes da luta Bond veste o seu smoking branco glamouroso e Swann usa um vestido arrasador. E depois da luta eles fazem sexo, não porque o filme construiu um sentimento de atração entre eles, mas sim porque é o tipo de coisa que geralmente acontecia nos velhos filmes de Bond – depois da morte e da violência, vinha o sexo, ou vice-versa. Toda a construção e o investimento nas situações realistas que os filmes anteriores com Craig tiveram, aqui são meio que jogados pela janela em nome de uma “brincadeira cinematográfica”.

Mendes e Craig aqui querem “brincar de James Bond”, e embora essa ideia não seja ruim em si mesma, ela é prejudicada pelos clichês do roteiro e pelo simples fato de que, sim, clichês deixam a história previsível e retiram dela um pouco da emoção. Quando vemos, por exemplo, o personagem Max Denbirgh (Andrew Scott) tentando instalar um super-sistema de espionagem e vigilância, só podemos imaginar que dali não sairá coisa boa. E quando começamos a ver Waltz de novo repetindo seu personagem Landa de Bastardos Inglórios (2009), fica clara a intenção de revelá-lo como um famoso vilão da franquia.

Por que 007: Cassino Royale (2006) permanece o melhor filme com Craig e um dos melhores da franquia? Porque, entre outras razões, foi o filme mais corajoso dela, o exemplar que teve ousadia de mostrar que o personagem funciona mesmo sem esses clichês. Também é o único a ser voltado para personagem ao invés de ser voltado para a trama, e a trama de Spectre é muito superficial para se sustentar por si própria. De novo, é um bom filme: é possível se empolgar com ele, é um prazer ver os eternos coadjuvantes M (Ralph Fiennes), Q (Ben Whishaw) e Moneypenny (Naomie Harris) serem bem utilizados na história, e os minutos finais realmente guardam algumas surpresas. Mas essa história de retomar o espirito mais tradicional da série parece sinalizar o fim da era Daniel Craig. Além disso, a superficialidade da produção a deixa tão sem alma quanto o próprio 007, um homem que fez da profissão de matar a sua vida e perdeu algo no caminho. Não deixa de ser curioso o fato de que um filme tão cheio de imagens da morte, a ponto de se assemelhar a um cemitério, seja meio sem “alma”.