Hollywood e Los Angeles podem ser locais mágicos, terra dos sonhos, da magia e do glamour, mas por trás das aparências existe um lado negro, escondido, o que é na verdade muito humano. A promessa do estrelato transforma as pessoas em algo que elas não são, e a terra do cinema é um lugar maluco onde as fronteiras entre realidade e ficção se dissolvem – no fim das contas, o que as pessoas realmente são importa, ou o mito é mais importante? Alguns filmes na história do cinema exploraram esse lado obscuro do sonho hollywoodiano – Billy Wilder já tinha mostrado como o negócio funciona por lá em Crepúsculo dos Deuses (1950). Mais recentemente, La La Land (2016) usou as convenções do musical para mostrar a cidade de forma bem idealizada. Entre esses dois polos, porém, poucos filmes na história de Hollywood retrataram tão bem a confusão entre cinema e vida real quanto Los Angeles: Cidade Proibida, que está completando 20 anos e, além de ser uma construção cinematográfica praticamente perfeita – como La La Land, ele remete a outro tipo de cinema, o noir – também diz muito sobre a realidade atual da capital do cinema.

Vamos começar logo pelo elefante na sala: O filme do diretor Curtis Hanson – que nunca fez nada tão incrível na carreira quanto este filme, depois ou antes – e baseado no sensacional livro do autor James Ellroy, traz logo numa das suas primeiras cenas o detetive Jack Vincennes (vivido por Kevin Spacey) expondo dois candidatos a estrelas num escândalo sexual. A vida real às vezes tem mais capacidade para ironia dramática que as peças de ficção, e cada espectador de cinema terá de escolher como lidar daqui para frente com a figura de Spacey nos seus filmes antigos – de minha parte, confesso que escolhi não rever Los Angeles: Cidade Proibida para fazer este texto. Ainda é muito cedo. Felizmente conheço o filme quase de cor.

O fato é que o escândalo Kevin Spacey adiciona uma nova camada à confusão entre realidade e ficção presente dentro da trama. Vincennes é um dos três policiais da trama: os outros dois são o esquentado Bud White (Russell Crowe) e o certinho Ed Exley (Guy Pearce). Ao longo da história, os três se envolvem numa trama envolvendo mafiosos, drogas, fofocas de tabloide, corrupção policial e prostitutas transformadas em sósias de estrelas de cinema. O livro de Ellroy é realmente bem intrincado, unindo de maneira empolgante a literatura pulp com o conhecimento quase enciclopédico do autor sobre a cidade de Los Angeles e sua história. Por muito tempo foi considerado “infilmável”, até o roteirista Brian Helgeland conseguir a façanha de esculpir este roteiro. Helgeland foi o responsável por um dos dois Oscars que o filme ganhou em 1998, merecidíssimo – a outra estatueta é mais questionável, a de atriz coadjuvante para Kim Basinger pelo papel da prostituta Lynn Bracken. Basinger até tem o melhor desempenho da carreira no filme, mas isso não quer dizer muito, ela sempre foi uma atriz bem limitada.

Mesmo assim, os deuses do cinema olharam para este projeto com carinho. Basinger funciona no papel porque ela está ligada no “modo” estrela de cinema, não no de atriz. Ela é o sonho, a figura idealizada e cinematográfica da mulher perfeita – mesmo que em uma cena o roteiro tente lhe dar um pouco mais de humanidade e história. Ela é a fantasia, o arquétipo da “prostituta com coração de ouro”, aquilo com que sonhamos quando imaginamos o glamour do cinema. Os demais personagens também existem num mundo cinematográfico, só não sabem: White e Exley podem ser mais “pé-no-chão”, mas ao longo da história também se envolvem no dilema “aparências vs. realidade”. No fundo, Los Angeles: Cidade Proibida é um filme sobre o cinema e se alimenta de décadas e décadas de filmes noir e de detetives no cinema americano. Ele é colorido e tem mais violência, sexo e palavrões do que os clássicos com Humphrey Bogart, Robert Mitchum e Barbara Stanwyck, mas funciona dentro daqueles mesmos termos.

Hanson podia estar fazendo um filme sobre a relação entre ilusão e realidade, mas se preocupou com a verossimilhança da experiência, estendendo-se à escalação do elenco. Spacey já era conhecido na época e tem uma atuação de astro – com direito a uma surpresa à la Hithcock – mas entregar o peso do filme aos então desconhecidos Crowe e Pearce foi um risco grande. Hanson acreditava que, por serem menos expostos à tradição e aos clichês dos filmes noir, esses dois estrangeiros – Crowe é neozelandês, Pearce australiano – representariam melhor e mais verdadeiramente ambos os personagens do que atores norte-americanos. Hanson se provou certo quando alguns anos depois Brian De Palma se meteu a adaptar outro livro fantástico de Ellroy, Dália Negra (2006)… e seus atores, Josh Hartnett e Scarlett Johansson, se viram limitados por seus desempenhos cheios de “pose de filme noir”. Mas tudo funciona tão bem em Los Angeles que até os desempenhos menores são repletos de vida e nuances – o capitão vivido por James Cromwell é uma das grandes figuras do filme, e até os detetives canastrões dos seriados de TV vistos dentro do filme têm motivos para serem canastrões!

Dos desempenhos à reconstituição de época – a cena em frente ao cinema logo no início encapsula o filme, é o olhar do cinema, o do diretor e o nosso também, tornando bonito algo sórdido – não há nada realmente fora de lugar em Los Angeles: Cidade Proibida. Mas o que mais fica presente ao fim da sessão não é tanto a trama labiríntica, é mais o jogo indefinível entre o que é real e o que não é. Todos têm algo a esconder ou querem aparentar – ou se tornar – algo que não são. Em outra cena que resume o filme, o detetive Exley leva um copo de bebida na cara ao insultar uma prostituta parecida com a atriz Lana Turner. Porém, sem saber, ele estava falando com a verdadeira Lana Turner! Em Hollywood, sempre foi difícil determinar o que é real. Para muitos espectadores, o irreal é o mais importante: bom mesmo é ver a justiça sendo feita pelo policial herói com cara de astro. O importante é o herói triunfando, o romance de duas pessoas absurdamente bonitas vencendo as dificuldades. Curtis Hanson nos dá quase tudo isso ao final da sua maior obra, mas na forma de uma piscadela para nós, os espectadores.

Mas parece que há outro tipo de público aparecendo, um que parece não ligar tanto para o mito e a irrealidade do cinema. Há uma parcela do público que não quis mais comprar o Kevin Spacey como astro e o fez ter a carreira destruída – com uma boa ajuda do próprio Spacey, claro. Será que a nossa relação com Hollywood e os mitos criados por ela está mudando? Se sim, então um filme cínico e inteligente como Los Angeles: Cidade Proibida parece bastante atual. Atual até demais: afinal, o Kevin Spacey está nele.