Quando Christopher Lee morreu em 2015, muitos de nós descobrimos a vida curiosa que ele viveu. O britânico Lee lutou na Segunda Guerra Mundial, tanto no front matando nazistas quanto como agente secreto: Sim, ele fez parte das Forças Especiais britânicas e foi agente de inteligência. Ah, a propósito, ele era primo de Ian Fleming, outro que foi agente de inteligência e mais tarde o criador de James Bond – e em mais uma curiosidade, décadas depois e já famoso como ator, Lee interpretou o vilão Scaramanga no filme de Bond 007 Contra o Homem com a Pistola de Ouro (1974), e chegou a dizer que baseou um pouco da sua interpretação no próprio Fleming. Ah, e ele chegou até a gravar discos de heavy metal com o seu vozeirão, e isso já numa idade avançada: Seu álbum sobre Carlos Magno saiu em 2010, quando ele já era quase nonagenário!

Também foi o vilão em O Homem de Palha (1973) – seu filme favorito da carreira. E foi ainda Saruman nas trilogias O Senhor dos Anéis e O Hobbit – o único membro do elenco de ambas as sagas de Peter Jackson que conheceu o autor J. R. R. Tolkien – e conde Dookan em Star Wars. Que currículo…

Ele foi também o conde Drácula, e aí começa a maior das curiosidades sobre este interessantíssimo ator. Lee nunca gostou de viver Drácula, mas este foi o papel que o tornou famoso. Ele odiava ser estereotipado e ficar marcado pelo papel. Mas, na vida, muitas vezes são as coisas que odiamos que nos definem, não é mesmo? E tudo começou com um filme que em 2018 completa seu 60º. aniversário: o clássico Drácula: O Vampiro da Noite.

Um remake? Que heresia! Opa, calma aí…

No final dos anos 1950 os filmes de terror haviam virado piada: o ciclo de monstros da Universal há muito tinha virado paródia. Foi quando o estúdio britânico Hammer juntou uma graninha e resolveu fazer aquilo que deixa muitos fãs do gênero revoltados até hoje: refilmar alguns clássicos!  A Hammer entrou no mapa cinematográfico com dois tiros certeiros: A Maldição de Frankenstein (1957) e Drácula: O Vampiro da Noite (1958), ambos estrelados por Lee e seu amigo Peter Cushing, e grandes sucessos de bilheteria. Lee fez os monstros em ambos os filmes, a criatura de Frankenstein e o vampiro. E os dois foram dirigidos por Terence Fisher.

O filme do vampiro não é uma adaptação fidedigna do livro de Bram Stoker, mas aqueles elementos tradicionais dos filmes de Drácula estão lá. Jonathan Harker (John Van Eyssen) visita o castelo do conde na Transilvânia, tenta matá-lo, mas o vampiro escapa e começa a fazer suas vítimas. Seu algoz então surge para combatê-lo: o professor Van Helsing, vivido por Cushing.

A abordagem da Hammer era moderna: agora, os monstros clássicos dos quais o público se lembrava pelos filmes da Universal estavam em produções coloridas e mais chocantes. Também havia uma maior dose de sensualidade: com o tempo, as camisolas usadas pelas ficariam mais transparentes.

Como filme, Drácula: O Vampiro da Noite se sustenta até hoje, à parte alguns momentos antiquados. Duas cenas em especial impressionaram na época e continuam fortes: a aparição de Lee com olhos arregalados e sangue escorrendo da boca no início; e a decomposição de Drácula ao final, feita com a maquiagem aplicada sobre o rosto do ator se derretendo. Plateias da época não estavam acostumadas com tal intensidade nos seus filmes de terror.

A interpretação de Christopher Lee, em especial, é o que faz o filme. De todos os seus filmes de Drácula, este é o que lhe deu mais elementos com os quais trabalhar – mais sobre isso à frente. Seu vozeirão, sua presença em cena e sua altura fazem do seu personagem um vilão imponente. Com o tempo passamos a associar o vampiro à sedução, e Lee exercitou essa faceta no seu retrato do vampiro. Porém, acima de tudo seu Drácula era um monstro sanguinário que queria matar e beber sangue em primeiro lugar. O húngaro Bela Lugosi, antecessor ilustre do ator inglês, não podia ser sanguinário pelas restrições da época, por isso investiu mais no aspecto da sedução do mal. Já Lee, no papel, era sedutor às vezes, em outras parecia um ancestral classudo do Jason Voorhees. Este vampiro definitivamente não era daqueles que brilha à luz do dia…

Um vampiro mudo e mal-humorado

Christopher Lee sempre teve uma relação difícil com o papel de Drácula. Embora até gostasse do livro de Bram Stoker, ele reclamava do papel raso dos filmes e temia – muito compreensivelmente – nunca conseguir se desvencilhar do personagem. Por isso, a continuação demorou para sair e só foi feita depois de muita aporrinhação por parte do chefe do estúdio, Jimmy Carreras. Lee chegou a afirmar que sofria chantagem emocional por parte do executivo para continuar como Drácula, ouvindo coisas do tipo “sabe quantas pessoas ficarão sem trabalho se você não fizer o filme?”.

Logo na primeira sequência, Drácula: O Príncipe das Trevas (1966), duas coisas ficaram claras. Primeira, que Lee não teve falas: no filme inteiro, seu personagem só matava e fazia caretas. E segunda, o filme era quase um Massacre da Serra Elétrica antiquado e britânico – na história, os personagens visitavam o castelo do conde e um deles era exsanguinado para ressuscitar o vilão, numa cena forte até hoje.

Christopher Lee acabou fazendo mais cinco filmes como Drácula depois deste, durante o fim dos anos 1960 e a década de 1970. Sempre praticamente entrando mudo e saindo calado, aparecendo pouco e sem ser exigido como ator. Os últimos já foram feitos com tom de galhofa, com o conde sendo trazido para a era moderna, ou seja, os anos 1970. No total, foram sete filmes de Drácula com Lee, com o ator sempre deixando claro seu desgosto por tantas continuações na imprensa e para quem quisesse ouví-lo.

Apesar dos pesares, um monstro para a história

As produções do estúdio Hammer mudaram para sempre o gênero terror. O requinte das produções, a qualidade técnica, os ótimos atores e a coragem para ir um passo além ao mostrar violência e sexo deixaram marcas no cinema. E sem Christopher Lee, não existiria Hammer.  O ator podia até não gostar do rumo que a sua carreira no estúdio acabou tomando, mas criou na figura do seu Drácula um monstro que entrou para a história. Uma criatura capaz de dominar sua vítima pela sedução, mas que escondia sua verdadeira face monstruosa só um pouco abaixo da superfície. No mesmo filme, ele podia começar como o vampiro de Lugosi, para depois se tornar o ancestral do Leatherface.

Eu realmente defendo essa tese: o Drácula do ator é o avô dos monstros modernos do cinema. Assistir a esses filmes hoje é presenciar um momento de encruzilhada no gênero, uma encruzilhada personificada na figura do ator, um sujeito de classe e temperamento tipicamente britânicos, mas que já tinha passado por algumas ocasiões na vida nas quais precisou ser selvagem e quase irracional. Por isso, na visão de muitos – e na minha também – ele foi o melhor e mais assustador Drácula das telas.

E olha só, ele interpretou a Múmia também, em outro filme legal da Hammer, em 1959. Quantos podem dizer que viveram o monstro de Frankenstein, a Múmia e o Drácula na carreira? É provável que, quanto mais biógrafos investiguem a vida de Christopher Lee, mais desses fatos notáveis sejam descobertos…