Em 2016 uma declaração do ator Viggo Mortensen me deixou triste. Ele disse que o cineasta David Cronenberg, seu amigo, estava pretendendo se aposentar do cinema. Já este ano, o próprio Cronenberg se pronunciou: numa entrevista com a Entertainment Weekly, ele declarou que não deve se aposentar, mas estaria mais interessado hoje em fazer uma série ou minissérie para streaming do que um filme. Ele até publicou um romance em 2014, intitulado Consumed. Por isso mesmo, a volta do cineasta ao cinema parece incerta, aparentemente ele tem outros interesses no momento.

O que é algo a se lamentar, no fim das contas. Claro, alguns filmes de Cronenberg são melhores do que outros, mas ele é, em minha opinião, um daqueles raros cineastas que nunca fez um filme ruim de verdade. E por toda a carreira, ele sempre se mostrou interessado em provocar o espectador, tirá-lo da zona de conforto, e o cinema hoje precisa mais disso.

Mas como este é o Especial Terror do Cine Set, o objetivo deste artigo é aguçar uma curiosidade: Se David Cronenberg ainda quiser fazer mais um filme, você gostaria que fosse uma volta dele ao gênero que o consagrou? Cronenberg deveria voltar ao terror? Acompanhem-me nessa reflexão sobre a carreira dele no gênero…


O rei do horror venéreo

David Cronenberg nasceu em 1943 em Toronto, Canadá. Filho de um jornalista e de uma pianista, ele quase virou um cientista. Mas acabou mesmo como um dos grandes cientistas loucos do cinema, trabalhando dentro da incipiente indústria canadense da década de 1970. Depois de trabalhar em programas de TV e fazer curtas, conseguiu rodar seu primeiro longa, que já anunciou sua chegada ao cinema de gênero em grande estilo. Calafrios (1975) pegou um pouco emprestado de A Noite dos Mortos Vivos (1968) de George Romero e, ambientado num edifício, contou a história de um grupo de moradores burgueses e endinheirados que se transformam em maníacos sexuais e assassinos quando são infectados por criaturas nojentas desenvolvidas por um cientista que trabalhava no local.

O filme foi feito parcialmente com dinheiro público, o que causou indignação de certos setores da sociedade da época. Mas foi também um dos únicos a obter lucro nas salas do Canadá na época… Assim como o seguinte do diretor, Enraivecida na Fúria do Sexo (1977), variação do tema do vampirismo e zumbis e de novo, misturando sexo à ideia de uma contaminação destruindo a humanidade. E depois, veio Os Filhos do Medo (1979), o primeiro grande filme do cineasta, no qual ele reflete sobre a dor do divórcio e os traumas que pais passam aos filhos sob uma lente aterrorizante e estranhamente comovente.

Cronenberg teve um sucesso ainda maior com Scanners: Sua Mente Pode Destruir (1981). Misturando terror, ação e ficção científica, Scanners unia o interesse físico de Cronenberg pelas nojeiras e destruição da carne com um aspecto mental – os personagens do título são pessoas com poderes mentais, e visto hoje, é quase um X-Men do diretor. O filme também tem a cena mais famosa da carreira de Cronenberg, quando o vilão vivido pelo ator Michael Ironside explode a cabeça de um pesquisador usando seus poderes.

Hollywood bateu à porta e Cronenberg fez três filmes em seguida para grandes estúdios, demonstrando coragem e sem comprometer sua autoralidade. Em Videodrome (1982), sexo, violência, alucinações e efeitos nojentos de maquiagem fazem parte de uma história que antecipava nosso interesse por reality TV e tortura nas telas. A Hora da Zona Morta (1985) é mais convencional, mas ainda poderoso, com o cineasta adaptando o livro de Stephen King sobre um homem capaz de ver o futuro, e ele é terrível – Christopher Walken tem nele uma atuação antológica. E A Mosca (1986) virou o maior sucesso comercial de Cronenberg ao misturar uma terna história de romance com a maior deformação da carne que o cineasta foi capaz de mostrar até então, a transformação do cientista vivido por Jeff Goldblum numa criatura parte homem, parte mosca, parte câncer. À época, A Mosca representou o ápice de Cronenberg na sua vertente do horror físico, e o cineasta não voltou mais ao gênero. Afinal, o que um alpinista faz depois de alcançar o topo do Everest?


Do físico para o mental: o horror continua?

Há quem diga que Cronenberg nunca parou de fazer filmes de terror, afinal, seus filmes continuaram perturbadores. Mas, definitivamente depois de A Mosca, suas atenções se voltaram mais para o psicológico do que para o físico. Obras como Gêmeos: Mórbida Semelhança (1988) – meu particular favorito dele – Crash: Estranhos Prazeres (1996) e Spider (2002) lidam com problemas mentais ou perversidades sexuais. E claro, há as ficções-científicas de Mistérios e Paixões (1991) e eXistenZ (1999), nos quais umas criaturas esquisitas aparecem, mas não se pode classificá-las como terror.

Depois de décadas mexendo com as cabeças dos espectadores, Cronenberg virou meio que um autor “respeitável”, pelo menos para o pessoal mais requintado da Academia, com Marcas da Violência (2005) e Senhores do Crime (2007). Ambos foram estrelados por Viggo Mortensen e receberam indicações importantes para o Oscar. São filmes mais convencionais, mas que mesmo assim se encaixam nessa preocupação mais psicológica do diretor, pois ambos lidam com a questão da identidade. Ora, o horror de não se conhecer de verdade um próprio membro da família é um sentimento que Cronenberg explora em Marcas, e provavelmente um cineasta desacostumado a assustar e enojar o público não teria explorado essa noção tão bem quanto ele fez ali.


Uma rejuvenescida na carreira?

É possível um diretor já com idade filmar como fazia na juventude? Na maioria dos casos eu argumentaria que não – Os melhores filmes de um diretor quase nunca são aqueles do fim da carreira, são os do começo. Um Martin Scorsese, que continua excelente e imune à idade, é um caso raro. No caso de Cronenberg, acho que a idade pesou um pouco: seus últimos filmes Um Método Perigoso (2011), Cosmópolis (2012) e Mapas para as Estrelas (2014) são bons, mas não devem ser os favoritos de ninguém dentro da filmografia do cineasta.

Mesmo pensando assim, a pergunta é suficiente para despertar reflexão: E se ele voltasse ao terror?  Há precedentes de cineastas que passaram décadas experimentando novas narrativas, ampliando as possibilidades dos seus respectivos cinemas por variados motivos, mas quando voltaram às suas “especialidades” deram uma reenergizada na carreira. Nomes como Ridley Scott, William Friedkin, M. Night Shyamalan… Alfred Hitchcock, depois de uns anos em baixa em Hollywood, voltou ao básico e fez Frenesi (1972) na Inglaterra, provando que ainda sabia assustar o público. Dentro do terror, Wes Craven ressuscitou a carreira não uma, mas duas vezes. Recentemente Steven Spielberg, após anos fazendo dramas com resultados variados, voltou a divertir o público com Jogador No. 1 (2018), que virou seu melhor filme em anos. E o velhinho George Miller voltou ao seu universo de Mad Max, com o qual ele não trabalhava havia 30 anos, e fez o melhor filme de ação do século XXI, não foi?

O mesmo poderia ocorrer com Cronenberg? Argumento que sim, afinal uma das coisas legais a respeito dele é que Cronenberg ainda demonstra carinho pelo gênero que o tornou famoso. Há alguns anos ele tentou emplacar um projeto de continuação de A Mosca junto ao estúdio Fox, sem sucesso.

Falando como fã, eu adoraria ver David Cronenberg fazer mais um filme – qualquer um. Mas se fosse de terror ou terror/sci-fi, a simples perspectiva me animaria bastante. Pode dar errado? Pode, mas ao mesmo tempo acho Cronenberg um diretor inteligentíssimo que saberia escolher um bom projeto para marcar o seu retorno ao gênero. Ora, “vida longa à nova carne”, já dizia o protagonista de Videodrome. Muito tempo já passou, é hora de renovar esses votos.