A guerra fria como cenário histórico, sempre ganhou fortes lentes masculinas dentro do cinema de espionagem, sendo vinculada diretamente a imagem do herói alfa-macho-viril, potente e indestrutível, um estereótipo que existe desde os primórdios do cinema – intensificado na década de 80 pelo cinema de ação cabra-macho de testosterona – de que tudo gira ao redor do processo de identificação masculina, na qual o papel feminino serve apenas de interesse romântico do herói.

Atômica é a prova cabal que se pode fazer ótimos filmes de ação-espionagem, centrados em uma protagonista feminina. Os primeiros comentários que surgiram nas redes sociais após a divulgação do primeiro trailer é de que ele seria a versão feminina de John Wick. Bem, esqueçam essa visão. Atômica está longe de ser um subproduto masculino, afinal o filme dirigido por David Leitch (co-diretor do primeiro John Wick – De Volta ao Jogo, o único elo de ligação com o filme estrelado por Keanu Reeves) possui personalidade própria, dotado de um estilo estético sinuoso e uma sinergia única na sua narrativa que permite valorizá-lo pelas suas características próprias e não pelas comparações com a outra produção.

Com um pé nas HQs, é baseado na graphic novel  A Cidade Mais Fria (The Coldest City) de autoria de Antony Johnston – responsável pela série de quadrinhos Wasteland – e Sam Hart, temos a agente do MI6 vivida por Charlize Theron, Lorraine Broughton envolvida em um jogo de espionagem na Berlim da guerra fria na semana da queda do muro. Ela investiga a morte de um colega e precisa resgatar uma lista que contém informações sigilosas sobre agentes duplos em atividade. Para a missão, ela conta com a ajuda do excêntrico espião Percival (James McAvoy), chefe da divisão local. Dentro desse território hostil, MI6, KGB e CIA travarão um jogo de poder para ter acesso às informações.

Como personagem, Lorraine é mais do que um John Wick ou James Bond de saia, ela é a Mulher Maravilha da espionagem, com direito a momentos em que utiliza um laço para eliminar seus adversários, assim como a rainha amazona. Porém, diferente da Diane cheia de valores e inocência, Lorraine é uma agente impiedosa, que utiliza o senso do certo e errado não para fazer aquilo que é mais justo e sim para sobreviver em um mundo machista. É como se a todo momento, pelo fato de ser mulher, ela percebesse que todos querem tirar proveito dela e por isso analisa todas suas ações de forma calculista.

Não é à toa que o realismo do filme é tão forte: Lorraine apanha quase tanto quanto bate e isso traz tridimensionalidade não apenas para ela quanto para os vilões. Temos uma agente secreta cheia de hematomas e cortes pelo corpo diferente do estereótipo do espião invulnerável que nunca sangra, e o melhor, nada de vilões que revelam seus planos de forma esquemática.

É inegável que Charlize Theron é uma das bases principais que sustentam o filme. A atriz levou tão a sério sua performance que dispensou o dublê para fazer as cenas e acabou sofrendo um acidente de trabalho com direito a dois dentes quebrados. Tirando isso, ela soube captar a destreza e a seriedade da sua personagem, exercendo tanto magnetismo e carisma quando encontra-se em cena. Sua atuação é multifacetada, indo da entonação mais imponente a vulnerável com grande segurança, o que transmite humanidade a sua espiã. Chama atenção como sua carreira no cinema de ação caminha cada vez mais de forma sólida depois de Mad Max – Estrada de Fúria e Velozes e Furiosos 8. Sua espiã não deve nada a Furiosa.

Se por um lado Atômica revela-se interessante ao apresentar uma forte heroína feminina em carne e osso, pelo outro temos um filme que é metódico e cirúrgico na construção das suas imagens e roteiro. David Leitch faz parte de uma nova geração de diretores, ex-dublês de ofício, que manjam do riscado de ação. Jonh Wick serviu de base experimental para o diretor elevar em Atômica, as coreografias de lutas e brigas a um nível de excelência. Nele, temos um plano-sequência de aproximadamente 15 minutos de tirar o fôlego da plateia em uma escadaria, cena que entra facilmente para as melhores do ano ao misturar porrada, violência, humor, fadiga física e carros em apenas um único segmento. Leitch permite uma ação verossímil, de imersão naquele universo, que nada lembra os mesmíssimos momentos picotados e as câmeras tremidas copiados extensivamente da franquia Bourne pelo cinema de ação atual.

Essa combinação entre um cinema mais bruto e cru, ajuda na estética retro do longa e na sua fotografia cheia de neons. A cena de sexo entre duas mulheres é filmada através de uma iluminação avermelhada que deixa uma sensação de paixão tórrida e sensual nas suas imagens decorrentes dos atos de suas personagens. É uma cena sem qualquer pudor, algo raro de se encontrar no cinema americano atual. Leitch cria um visual único de uma Berlim, anacrônica, anárquica e fantasmagórica durante todo o longa-metragem, um cenário onde a trapaça e a violência ditam os comportamentos dos heróis e vilões.

E tudo isso embalado por uma trilha sonora magnifica que compete ao lado de Em Ritmo de Fuga como a melhor do ano: O uso de Father Figure de George Michael, She Lost a Control do Joy Division e Cat People de David Bowie em certas cenas são repletas de referências e significados para o enredo do filme.

Mas longe de ser apenas uma perfumaria de imagens vazias, Atômica apresenta um texto sóbrio focado nas intrigas de espionagem que remete aos romances de John Le Carré e aos clássicos filmes de 007 da era Connery, por mais que seu plot demore para engrenar e revele-se confuso na sua narrativa principal da missão de Lorraine. É como se o roteiro dimensionasse uma complexidade maior que sua própria trama possa oferecer, apenas para fingir ter mais profundidade. Neste sentido falta uma mitologia própria e original, além personagens relevantes – com exceção da protagonista – como acontece na franquia de John Wick. Em nenhum momento, o roteiro se mostra disposto em discutir a espionagem e suas relações com a queda do muro, uma possibilidade que seria extremamente viável e interessante aos propósitos do longa, além de dar consistência maio para sua narrativa.

Mesmo a história não sendo inovadora ou o seu ponto alto, ela é sustentável no seu jogo de reviravoltas e na emblemática caracterização da sua heroína, contando com um elenco secundário eficiente, com destaque para James McAvoy, surtado na ironia como agente ambíguo. Atômica é uma trama de espionagem elitizada ao máximo, divertida e extremamente potente. É um daqueles filmes com cara retro que poderia ser confundido como uma produção da década de 80, se sua estética moderna não o denunciasse. Podemos dizer, que finalmente, o cinema de espionagem tem uma heroína espiã que sabe ser provocadora, forte, brucutu, mas sem que tenha que perder sua feminilidade. Mata Hari com certeza, se sentiria muito bem representada.