É 1980 e ela transita por naturezas-mortas: os discos empilhados nas prateleiras do flat, os antidepressivos no armário do banheiro, as guloseimas da bomboniere do Empire, cinema onde é gerente. Para além de varrer a pipoca do chão e recepcionar os clientes, seus dias no trabalho são pontuados por transas tristes com o chefe, o abusivo Sr. Ellis (Colin Firth), em um escritório igualmente triste e mal iluminado. 

Ela é Hilary Small (Olivia Colman), e sua vida igualmente small (rá!) ganha uma lufada de ar fresco com a chegada de Stephen (Michael Ward) – jovem, bonito e negro – ao Empire. Logo no primeiro encontro, Stephen encontra um pombo com a asa quebrada;  enquanto improvisa uma tipoia para o bichinho, ele diz que o pássaro só precisava de uma ajudinha. Os olhos de Hilary se acendem. 

O simbolismo é óbvio e bobo, assim como o nome da personagem: Hilary é o pombo que quer voar, mas não consegue e é ela quem precisa de uma ajudinha. Se esse tipo de metáfora parece um grande insight para você, então “Império da Luz” é um prato cheio. 

Entre o raso e o redundante

É que o diretor e roteirista Sam Mendes (“1917” e “Beleza Americana”) não consegue ir muito além com seus personagens. Os filmes do britânico, no geral, nunca ofendem; sempre abarcam uma certa sensibilidade meio almofadinha, com ideias liberais certinhas e bem-comportadas. 

Aqui, ele lança um olhar ao passado para tratar das questões sociais de hoje. Mas sua compreensão de mundo é tão rasa que a gente chega a suspirar na plateia: “ok, agora é a hora em que o filme vai falar sobre racismo”

Bem, pelo menos, tentar: na melhor das hipóteses, “Império da Luz” é bem-intencionado. Na pior, é redundante e raso. O mesmo pode ser dito sobre o tratamento dispensado às questões de gênero: Mendes é tão mal articulado que o trabalho pesado recai sobre as costas de Olivia Colman (“A Favorita”), que se vira como pode enquanto vocifera coisas como “homens não largam nossas gargantas”. 

Mentalmente instável, é claro que, no auge da crise da personagem, o apartamento aparece recoberto por rabiscos onde se lê “mother”, “wife”, “whore” e etc. Mendes parece, assim, escolher sempre as formas mais basais de representar o histórico de abuso enfrentado por Hilary. Nessas horas, a tentativa de mesclar a subjetividade dos personagens com comentários sociais, tudo sob a embalagem de drama de prestígio, chega a beirar o camp não-intencional. 

Mirando nos mestres

Dá até para dizer que o tratamento dado ao cinema – como um reflexo do que o ser humano tem de melhor, um espaço seguro contra as mazelas do mundo, até ser, inevitavelmente, penetrado – é bonito. Mas Mendes não é nenhum Spielberg; ele não tem mão o suficiente para dar conta de todo esse açúcar. Por mais que Colman se esforce e Roger Deakins, comandando a fotografia de mais um filme do diretor, crie alguns quadros embasbacantes (novidade), essas imagens reverberam no vazio, sem que “Império da Luz” as sustente. 

E Olivia Colman realmente se esforça. É uma pena, porque existe na sua relação com Stephen a sugestão de uma complexidade da qual o filme nem parece se dar conta plenamente. Temos aqui uma mulher branca de meia-idade, que se lança em arroubos explosivos a partir do momento em que percebe poder subjugar seu parceiro negro. O filme por vezes parece que vai descambar para um melodrama à la Fassbinder, explorando as dinâmicas de poder que permeiam as relações. Só que Sam Mendes (mais uma vez) não é nenhum Fassbinder. 

Antes, Mendes passa por cima das complexidades da sua trama como um rolo compressor, em busca de uma resolução inspiradora. Ele encheu seu prato, é fato – racismo e abuso contrapostos ao alimento espiritual dos filmes, o cinema como espécie de família. Mas, infelizmente, só faz regurgitar lugares-comuns. 

“Império da Luz” não desagrada – alguns elementos soltos tornam o todo menos amargo. Mas, se mira no inspirador e atemporal, acerta no comercial da AMC com a Nicole Kidman: olhos brilhando de forma afetada na sala de cinema, ao som de meia dúzia de jargões publicitários – cheiro de pipoca e autocongratulação no ar.