Uma regra não-escrita da sétima arte (escrevo agora) diz que um diretor medíocre pode fazer um bom filme se tiver um roteiro decente em mãos, mas o melhor cineasta jamais vai conseguir redimir uma trama ruim.

Eu sei, já usei esse ditado antes, mas ele parece bastante apropriado agora, enquanto folheio fascinado esta preciosidade. Bastardos Inglórios: O Roteiro Original do Filme, lançado em 2009 (tradução de Anna Lim), é um tipo de publicação raríssimo em terras brasileiras, e a editora Amarilys merece todos os aplausos por trazer esse material até nós. A chegada da obra do mestre americano é uma das contribuições mais importantes à literatura nacional sobre scripts dos últimos anos, junto com o clássico Story, de Robert McKee. Por quê? Bem, vejamos.

Um exercício interessante, para qualquer cinéfilo, é comparar um roteiro “bruto” à forma como ele chegou às telas. Quase sempre, no caminho, ele vai sofrer alterações, por questões de tempo, orçamento, elenco e vários outros fatores dessa complexa engenharia que é fazer filmes. O fato, porém, de ser Quentin Tarantino o autor da história torna a comparação especial por dois motivos: primeiro, por ele ser também o diretor do filme, o que abre uma janela especial para as decisões tomadas pelo artista durante a filmagem; e, segundo, porque o americano é, há décadas, considerado um dos melhores do mundo na atividade. Seus scripts, entre os quais o premiadíssimo Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994) fazem parte do repertório coletivo do cinema, tantas e tão deslavadas vezes as suas ideias já foram recicladas e reaproveitadas.

Bastardos Inglórios foi o sexto filme de Tarantino, e sua obra mais importante desde o segundo volume de Kill Bill, lançado em 2004. Uma história ousada e violenta, ambientada na Segunda Guerra Mundial, o filme tem um roteiro tão superlativo que o próprio Tarantino, ao fim da trama, se permite um elogio rasgado: “Acho que acabei de criar minha obra-prima”. De fato, na história dos Bastardos do título, um esquadrão de soldados judeus conhecidos pela ferocidade, e que se intercala com as trajetórias da judia fugitiva Shoshanna Dreyfuss, do soldado alemão Frederick Zoller e do oficial nazista Hans Landa, há tantos diálogos e sequências brilhantes que o filme pode ser considerado, tranquilamente, um dos ápices da carreira do diretor.

Mais uma razão, então, para querer ler o livro. E, comprovando que os roteiros são um universo à parte, há material de sobra no texto que não entrou no filme. A história da protetora de Shoshanna, Madame Mimieux, o maior relevo dado às personalidades dos Bastardos, a origem do famoso taco de Donny Donowitz, o “Urso Judeu”. E mais: as instruções frenéticas de Tarantino para a própria filmagem, como “até o fim, baby, até a porra do fim” ou “é quase romântico quando os dois tombam MORTOS no chão”, além de referências enciclopédicas a música e outros filmes – quase todas, aliás, muito bem explicadas nas notas de rodapé.

A edição brasileira tem a vantagem adicional de traduzir melhor do que as legendas do filme o linguajar e a dinâmica dos diálogos característicos do diretor. Ao fim da leitura, tem-se a impressão de que Bastardos seria uma obra ainda mais densa, violenta e barroca do que o filme que chegou aos cinemas – mas também nos perguntamos se a qualidade continuaria a mesma, após tantos acréscimos.

Resta, então, saborear o mergulho na criatividade anárquica do diretor americano, e, no processo, entender melhor como criar, estruturar e derivar o máximo impacto de palavras soltas numa folha de papel – a base para todo bom filme, já aprendemos lá em cima. Bastardos Inglórios: O Roteiro Original do Filme pode ser encontrado facilmente nas livrarias brasileiras, a preços que variam entre R$ 50 e 60.

Leia a ótima introdução de David L. Robbins e o primeiro capítulo do livro aqui.

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