É sempre fascinante ler sobre os bastidores de filmes que se tornaram clássicos ou importantes, ainda mais se forem produções de baixo orçamento. Há uma certa magia – e uma boa dose de loucura – envolvida quando um grupo de pessoas com poucos tostões no bolso se reúnem para fazer um filme. E essa magia se torna ainda mais poderosa quando o filme que eles realizam se torna um inesperado sucesso ou marco dentro da história do cinema ou de um gênero específico.

O terror, em particular, é repleto dessas histórias mágicas. É sabido que os fãs do gênero no Brasil sofrem. Os lançamentos de filmes clássicos de terror em DVD são meio escassos, assim como literatura de referência sobre eles – o contrário do que se vê nos Estados Unidos, por exemplo, onde lá os fãs são tratados com respeito e para cada clássico ou filme famoso há várias edições especiais em disco e livros contando em detalhes o making of dessas obras. Para suprir um pouco essa lacuna por aqui, a editora DarkSide vem lançando, desde 2013, livros dedicados ao gênero e dois deles, em especial, são imperdíveis para os fãs malucos dos seus respectivos filmes.

“Arquivos Sangrentos: O Massacre da Serra Elétrica” disseca o clássico filme de 1974 dirigido por Tobe Hooper. É a versão tupiniquim do livro The Texas Chainsaw Massacre Companion, do autor Stefan Jaworzyn, lançado em 2003. E em “Arquivos Mortos: Evil Dead – A Morte do Demônio”, o autor Bill Warren se volta para a realização do cultuado filme de 1981 que iniciou a carreira de Sam Raimi. É a versão do livro The Evil Dead Companion, lançado em 2000.

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O livro de Jaworzyn é composto de entrevistas realizadas com os principais membros da produção de O Massacre da Serra Elétrica – uma notável exceção é o diretor Tobe Hooper, que só é referido via entrevistas de arquivo – intercaladas com comentários do autor. O autor começa analisando a produção do primeiro filme de Hooper, o psicodélico Eggshells, realizado em Austin, no Texas, em 1970. Foi lá que Hooper conheceu Kim Henkel, que trabalhou como ator na produção e veio a roteirizar O Massacre anos depois junto com o diretor. Os atores do Massacre, o roteirista, o diretor de fotografia Daniel Pearl e outros membros da produção também falam, contribuindo com anedotas e histórias fascinantes sobre a tumultuada filmagem, realizada sob o calor de 40 graus do verão texano.

Outros assuntos abordados são a distribuição do filme – realizada na época por uma companhia com laços com a máfia (!), que acabou ficando com a maior parte dos lucros da exibição nos cinemas – e a repercussão do mesmo. Os críticos ficaram ultrajados e a censura britânica o elegeu como um dos notórios “Vídeos Malditos” (Video nasties, no original), impedidos de serem exibidos no país e de serem lançados nas locadoras. Até no Brasil o filme foi censurado, impedido de passar por muitos anos na época da ditadura militar – um adendo histórico da DarkSide.

Jaworzyn também fala sobre as continuações, que nunca conseguiram recapturar a emoção do primeiro. Na época que o livro foi lançado nos EUA, o remake O Massacre da Serra Elétrica (2003) ainda não havia sido lançado – e o autor revela desconfiança a respeito da refilmagem – mas a edição nacional o comenta brevemente, assim como os dois filmes lançados desde então, em capítulos curtos que seguem o mesmo estilo de entrevistas intercaladas com comentários do autor original. Há também um capítulo sobre a história do infame assassino Ed Gein, que serviu como inspiração para o filme, assim como também inspirou o Norman Bates de Psicose (1960) de Alfred Hitchcock, uma notória influência sobre o filme de Hooper.

evil dead a morte do demônioJá Warren, no seu livro, demonstra ser bem próximo dos principais envolvidos na trilogia Evil Dead, especialmente Sam Raimi, o produtor Rob Tapert e o ator Bruce Campbell. Essa intimidade é vantajosa, pois o autor demonstra conhecimento dos primeiros curtas de Raimi e da amizade entre o trio, que no fim das contas levou à colaboração em A Morte do Demônio. Os envolvidos na produção também contam piadas e histórias que enriquecem e muito o relato.

Warren também aborda a produção das continuações, Uma Noite Alucinante (1987) e Uma Noite Alucinante 3 (1992). Mas é o making of e o lançamento do filme original que ocupa a maior parte do livro. Chega a ser tocante o relato do autor sobre como o filme acabou nascendo da ingenuidade e da amizade de alguns adolescentes que resolveram brincar com câmeras e efeitos.

A repercussão do filme, que acabou se tornando um fenômeno controverso e sucesso cult, também é abordada, incluindo a exibição marcante em Cannes e o elogio de Stephen King – “um dos mais ferozes e originais filmes de terror já feitos” – que serviu como publicidade para o filme. Como O Massacre, A Morte do Demônio também virou um “vídeo maldito” na Inglaterra, com Raimi sendo processado por obscenidade (!). A DarkSide se lembra do mercado brasileiro e da estranha história da trilogia no Brasil: o primeiro filme foi lançado apenas em vídeo, para assustar uma geração de frequentadores de locadora, e os demais foram para o cinema com o infeliz título Noite Alucinante…

Warren teve tanto acesso a Raimi que acaba abordando também outros filmes da sua carreira, realizados entre os filmes da trilogia: a fracassada comédia Crimewave: Dois Heróis Bem Trapalhões (1985), roteirizada por Raimi e os irmãos Coen, amigos de longa data – Joel Coen trabalhou em A Morte do Demônio como assistente de edição – e Darkman: Vingança Sem Rosto (1990), seu primeiro filme para um grande estúdio, a Universal. Há também um capítulo, acrescido da edição brasileira, sobre o recente remake do filme original, A Morte do Demônio (2013).

Mas é o relato dos três filmes que mais impressiona. Foi a amizade e a loucura de Raimi, Tapert e Campbell que fez da trilogia Evil Dead algo muito especial com fãs em todo o mundo até hoje. No fundo, é a história de alguns caras com uma câmera na mão e várias ideias na cabeça, e foi a relação entre eles e a inventividade dos filmes que asseguraram a eles um lugar na história do cinema.

Há alguns erros bobos de tradução e algumas inconsistências que uma revisão mais apurada podia ter resolvido, especialmente em Evil Dead. Mas as edições são bem ilustradas e feitas com apreço – há versões normais e com capa dura – e a escassez de material desse tipo no Brasil até faz com que alguns problemas sejam perdoados. Relatos como os da produção de O Massacre da Serra Elétrica e A Morte do Demônio são importantes até para quem não gosta de terror. São histórias de entusiasmo pelo cinema, ingenuidade e criatividade capazes de incentivar realizadores e cinéfilos em todo o mundo. Afinal, um grupo de garotos fazendo um filme pode ficar famoso da noite para o dia e fazer um trabalho que será lembrado por gerações. Como Sam Raimi e Tobe Hooper atestam, tudo depende de um pouco de sorte, claro, mas criatividade, ousadia e trabalho duro são primordiais. Porque nenhum filme é fácil de fazer, e alguns dos envolvidos em ambos os filmes confirmam: às vezes é preciso dar o sangue (falso e verdadeiro) pelo cinema.