No livro Imagens, Ingmar Bergman revelou que a ideia para Sonata de Outono, sobre a labiríntica relação entre mãe e filha, veio em uma das suas turbulentas noites depois do escândalo da evasão fiscal envolvendo o sueco. Segundo o diretor, Liv Ullmann e Ingrid Bergman eram os únicos nomes possíveis desde o início. Verdade ou não, o encontro resultou em uma das melhores performances da carreira das atrizes e mais uma obra prima do cineasta.

Eva (Liv Ullmann) e o marido recebem uma inesperada visita da mãe dela, Charlotte (Ingrid Bergman), uma renomada pianista. Depois de anos sem ver uma a outra, elas se esforçam para manter as aparências e ignorar o passado. Enquanto isso, Charlotte precisa lidar com a presença da filha deficiente Helena (Lena Nyman), a qual negligenciou como fez com Eva. Depois de um jantar regado a provocações, mãe e filha desabafam todos os sentimentos adversos guardados por anos.

Aos moldes do que Bergman fez no irretocável “Cenas de um Casamento”, Sonata de Outono, ponto do encontro monumental entre Ingrid Bergman e Liv Ullmann, é outro excelente trabalho de escrita e dedicação das suas intérpretes. Mesmo diante de muitas divergências com Ingrid Bergman na forma de trabalhar, o filme é o ajuste perfeito da sintonia estabelecida pelo diretor, a esse ponto da carreira, com a sua arte e seus parceiros.

Em algumas entrevistas, Bergman afirmou nunca pensar nas situações como pertencentes a um gênero, para ele qualquer conflito ou questão poderia ser vivido tanto por uma ou um protagonista. Nesse caminho, é exatamente o que acontece em Sonata de Outono, cujo o centro da trama é o complexo vínculo entre mãe e filha, ainda assim transposto com louvor para o cinema por um autor. Como é comum do diretor, o embate entre mãe e filha ali é só mais um dos retratos da própria experiências de Bergman. O cineasta nunca escondeu o impacto da sua mãe, Karin, na sua vida e trajetória artística. A relação com os pais, causa de parte das suas lutas internas, sempre foi fonte inesgotável para o diretor, talvez por isso a composição desse relacionamento tão particular tenha ultrapassado qualquer barreira contra uma sólida representação.

Partindo disso, outro ponto é como Bergman contextualiza o papel da mulher quando ela prioriza outro caminho que não a maternidade. Intencional ou não, à medida que a trama revela mais sobre as personagens, a diferença no peso dado a ausência materna contra a paterna fica evidente. No caso de Charlotte, ela negligenciou as duas filhas para seguir a carreira de sucesso como pianista com o apoio do marido. Contudo, o personagem de Erland Josephson, pai das meninas, tenta suprir a falta da mãe com afeto, mas vive a própria angústia por sentir viver uma posição que não lhe cabe. Ele, como pai, não foi feito para preencher aquele vazio.

A narrativa construída pontua bem como a essência humana é ocultada quando se torna mãe. Charlotte não é (e não pode) mais ser vista como alguém ambivalente, com demônios e desejos, sem que isso a torne a vilã. É esperado que exercer sua posição de mãe sem tropeços, algo implorado pela filha. Nos monólogos da protagonista de Ingrid, há o questionamento sutil da realidade errônea de a mulher ser feita para a maternidade, do afeto ou até qualquer conexão emocional com os filhos como natural e instantâneo. Pelo contrário, todos os conflitos internos da personagem permaneceram com ela. O mundo de Charlotte não passou a girar em torno das filhas, mas continuou concentrado na própria cabeça.

Não é difícil entender como Bergman conseguiu expor com adequação todas as variantes. Em completa conformidade com tudo que ele construiu e como evolui ao longo da carreira. Sonata de Outono é um retrato acurado da mulher, a maternidade e sua vida, como sobre o impacto dos pais nos filhos e vice-versa. Algo que ele conhecia muito bem. Mais um Bergman sobre Bergman.