Lá em 1982 era fácil imaginar que carros voadores e androides seriam comuns já no início do século 21. Se a gente for mais atrás, na década de 1960, em plena guerra fria e corrida espacial, é fácil compreender porque tantas obras importantes da ficção científica apareceram. Uma delas, “Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?”, de Phillip K. Dick, imaginava um cenário distópico no qual o caçador de androides Rick Deckard retornava à ativa em busca de seis replicantes. Nas mãos de um Ridley Scott recém-saído do sucesso de “Alien: O Oitavo Passageiro”, o livro virou “Blade Runner”, um clássico indiscutível do cinema sci-fi. Trinta e cinco anos e algumas “remontagens” do filme depois, chega aos cinemas uma sequência que tinha tudo para ser um desastre, a exemplo de outros títulos que tentaram levar franquias oitentistas para a frente (‘Exterminador do Futuro’, alguém?), até porque, na antevéspera do 2019 no qual o primeiro “Blade Runner” se ambienta, aquela diegese já tem um tom que muitos consideram datado. No entanto, o que se vê é um grande filme que equilibra fan services ao mesmo tempo em que atualiza o antecessor e aponta novos caminhos para esse universo.

Como o título sugere, “Blade Runner 2049” se passa três décadas após os acontecimentos do primeiro filme. A bola é passada para outro caçador de androides, K (Ryan Gosling, eficiente), que está a procura de Rick Deckard (Harrison Ford, de volta a mais um personagem icônico), após descobrir um grave segredo.

Em tese, a estrutura de “2049” repete o primeiro “Blade Runner”, do letreiro que situa o espectador ao início do filme às primeiras interações de K ao que ele começa a sua investigação, e aqui já há que se reconhecer o grande trabalho da trinca montagem-fotografia-trilha sonora, fundamentais para ambientar o espectador e manter a aura noir da trama. A trilha, aliás, é uma grata surpresa, com o quase sempre burocrático Hans Zimmer (acompanhado de Benjamin Wallfisch) envolto nos mesmos sintetizadores que Vangelis imortalizou no primeiro longa. Assim como no filme de Scott, a música funciona como um ambiente de cena tão importante quanto a arma empunhada pelos caçadores de androides: note o crescendo da trilha de acordo com a as reações de Ryan Gosling na cena em que ele acha o cavalo de madeira.

Quem espera que o filme tenha um ritmo mais apressado e uma montagem frenética como os exemplares atuais de franquias cinematográficas, pode tirar o cavalinho ou a ovelha da chuva (he he). A intensidade de “2049” é marcada justamente por seu ritmo mais lento, que rima com o do primeiro filme, mas, de certa forma, traz mais desenvolvimento a seus personagens do que o título anterior, quando Ridley Scott parecia mais interessado em criar um universo cinematográfico.

Apoiado pelo roteiro da dupla Michael Green e Hampton Farcher (que também assinou o primeiro filme), o canadense Denis Villeneuve apresenta ‘K’ como um personagem que, no papel, é mais interessante que Deckard, cuja identidade de replicante ou não ainda é uma incógnita (e aí, mais uma vez, o mérito, é da interpretação carrancuda de Ford). Desde o princípio apresentado como replicante, K tem conflitos por matar outros androides e possui apenas uma relação importante, com uma inteligência artificial criada para ser recíproca.

Nesse sentido, a nota fraca fica por conta dos antagonistas, que seguem unidimensionais. De um lado, um Jared Leto apaixonado pela própria performance encarna uma caricatura do vilão que quer ser Deus. Do outro, a Luv da sueca Sylvia Hoeks evoca a estética da Rachael de Sean Young (vale destacar, mais uma vez, a montagem e a fotografia, fundamentais para que haja a dubiedade das duas personagens na primeira aparição da vilã), mas o único momento em que a personagem parece interessante é na última batalha.

Se há um aspecto que salta aos olhos de quem assiste a “2049”, é o design de produção do veterano Dennis Gassner, que, apoiado pelos efeitos visuais, cria um universo que faz jus àquele visto pela primeira vez no filme de Ridley Scott, mas também renova as imagens vistas na tela, afinal, as tecnologias do cinema mudaram bastante de 1982 pra cá. Um destaque é o design do local onde Deckard mora, grande e imponente o suficiente para acentuar a solidão que o personagem tanto contemplava. A aparição de hologramas dá um toque kistch – uma bailarina gigante no meio da rua! – necessário para atualizar aquela narrativa. Ainda sobre a projeção de imagens, não dá para não mencionar a já emblemática sequência onde Deckard e K batalham em meio a um show de hologramas defeituosos, e aqui a montagem parece dançar ao som das performances erráticas do palco.

Mas se Villeneuve confere frescor à franquia, os fãs do primeiro filme têm seus momentos de “ahá”, com pequenos fan services. Aí há rimas sonoras – como o som de um dispositivo que muda o foco das imagens de uma ossada, que lembra o barulho de “zoom and enhance” do original -, a aparição de um personagem importante do antecessor, e, claro, uma discreta, porém bela, lembrança à frase mais conhecida do primeiro “Blade Runner”, executada de forma inesperada. Ainda que seja precipitado definir “Blade Runner 2049” como um – perdoem o clichê de crítica de cinema – clássico instantâneo aos moldes de “Mad Max: Estrada da Fúria”, a produção firma Denis Villeneuve como um dos realizadores mais empolgantes do cinema atual, com a capacidade de transitar entre o trabalho de autor e o blockbuster com elegância.