“Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência”. Esta é a frase que a cineasta gaúcha Iuli Gerbase escolhe para abrir o seu primeiro longa-metragem intitulado “A Nuvem Rosa”.

O aviso prévio acaba se tornando um conselho ao espectador de como receber o filme. Afinal, a cineasta escreveu o roteiro do longa em 2017 que, por sua vez, foi filmado em 2019 – um ano antes da pandemia do coronavírus assolar a humanidade.

Na ficção científica, temos uma nuvem tóxica que surge misteriosamente ao redor do mundo, capaz de matar uma pessoa em apenas 10 segundos após contato. Essa condição obriga a sociedade a viver em isolamento extremamente rigoroso.

A história se concentra em Giovana (Renata de Lélis) e Yago (Eduardo Mendonça), dois jovens que haviam se conhecido na noite anterior do anúncio de quarentena. Agora, presos e debaixo do mesmo teto, terão que aprender a conviver um com o outro até que seja decretado o fim do isolamento social.

ROTEIRO SEM POTÊNCIA

Apesar da bizarra coincidência com a realidade e a presença de eventos semelhantes ao que aconteceram no mundo com Covid-19, Gerbase optou por explorar os percalços que o enclausuramento pode afetar um casal que se vê enclausurado 24 horas por dia e sete vezes por semana. Desta forma, “A Nuvem Rosa”, ao invés de abordar sobre a origem da nuvem, os problemas sociais e econômicos que ela causa, vemos um estudo de personagens debilitados psicologicamente por conta da quarentena.

A escolha da diretora pode causar um movimento dúbio entre os espectadores. Muitos podem se identificar ao ver as discussões, brigas e até conflitos físicos entre o casal afetado pelo isolamento. Ao mesmo tempo em que outra parcela se distancie da obra, pois, Gerbase pouco trata sobre os agentes externos de como a sociedade está lidando com a presença de nuvem tóxica que pode matar a qualquer momento.

Para não dizer que a cineasta ignora estes fatores, em certos momentos do longa, há a inserção de reportagens, anúncios governamentais e até personagens secundários interagindo com os protagonistas. Mas, estes elementos servem apenas para construção do cenário apocalíptico, nada além disso.

Ressalto que não há nenhum problema em focar a narrativa na construção do relacionamento de um casal, mas para isso, é necessário que haja diálogos potentes. E, não é o que vemos no longa: os diálogos não coincidem com os sentimentos expostos pelos personagens. Quando há o crescimento de uma tensão, rapidamente, ela é contida de forma abrupta e superficial.

Por outro lado, Gerbase acerta, por exemplo, várias questões que o isolamento social traz como a necessidade da busca de novas formas de contato, adaptação de diversas atividades de interação, como o trabalho remoto.

CINQUENTA TONS DE ROSA

Apesar da monotonia do texto, o mesmo não pode ser dito da paleta de cores utilizada no filme. Como o próprio título do longa já prenuncia, o rosa é a cor que predomina. Porém, vemos diversas ramificações da cor que ajudam a ditar o “tom” do momento.

Nas cenas em que a tensão sexual está presente, vemos um rosa mais vivo e caloroso que simboliza a sexualidade entre os personagens. Já em momentos de dispersão e isolamento de um dos personagens, o rosa que prevalece é de tom mais frio e brando. Destaque para a inserção de apenas uma outra cor durante o filme, totalmente justificável e essencial para o momento.

Somado as cores, temos ótimos enquadramentos que reforçam a ideia do isolamento como uma prisão. Os personagens estão sempre em cenários apertados e fechados que podem até causar certa claustrofobia em quem assiste.

A montagem também é outro ponto forte de “A Nuvem Rosa”. Há um momento em específico em que a sequência de cenas demonstra muito bem a transição do tempo que passou para o casal. Mas, ainda assim, certos “furos temporais” causam estranhamento por conta da narrativa pouco desenvolvida.

É natural a quem assiste buscar semelhanças ou ausências do mundo real na narrativa do filme. Mas o interesse de Gerbase é justamente a experiência e discussão de como o isolamento afeta a rotina dos indivíduos e, sobretudo, a mente das pessoas.

Talvez se a cineasta dedicasse um pouco mais na exploração de fatores externos que despertam a curiosidade do espectador, “A Nuvem Rosa” tivesse um maior impacto, principalmente nas cenas finais do longa. De qualquer modo, o longa marca um início ousado de Gerbase na direção de um longa, além de ser mais um bom exemplar de ficção científica do cinema brasileiro.

‘Uma Família Feliz’: suspense à procura de ideias firmes

José Eduardo Belmonte ataca novamente. Depois do detetivesco – e fraco – "As Verdades", ele segue se enveredando pelas artimanhas do cinema de gênero – desta vez, o thriller domiciliar.  A trama de "Uma Família Feliz" – dolorosamente óbvio na ironia do seu título –...

‘Donzela’: mitologia rasa sabota boas ideias de conto de fadas

Se a Netflix fosse um canal de televisão brasileira, Millie Bobby Brown seria o que Maisa Silva e Larissa Manoela foram para o SBT durante a infância de ambas. A atriz, que alcançou o estrelato por seu papel em “Stranger Things”, emendou ainda outros universos...

‘O Astronauta’: versão ‘Solaris’ sem brilho de Adam Sandler

Recentemente a revista Forbes publicou uma lista com os maiores salários recebidos por atores e atrizes de Hollywood em 2023. O N.1 é Adam Sandler: o astro recebeu no ano passado nada menos que US$ 73 milhões líquidos a partir de um contrato milionário com a Netflix...

‘Imaginário: Brinquedo Diabólico’: tudo errado em terror sem sustos

Em uma segunda à tarde, esgueirei-me sala adentro em Niterói para assistir a este "Imaginário: Brinquedo Diabólico". Devia haver umas outras cinco pessoas espalhadas pela sala 7 do multiplex. O número diminuiria gradativamente pela próxima hora até sobrar apenas um...

‘Duna – Parte 2’: Denis Villeneuve, enfim, acerta no tom épico

Abro esta crítica para assumir, que diferente da grande maioria do público e da crítica, não sou fã de carteirinha da primeira parte de “Duna”. Uma das minhas maiores críticas a Denis Villeneuve em relação a adaptação cinematográfica do clássico romance de Frank...

‘To Kill a Tiger’: a sobrevivência das vítimas do patriarcado

“Às vezes a vida te obriga a matar um tigre”.  De forma geral, “To Kill a Tiger” é uma história dolorosa com imagens poeticamente interessantes. Um olhar mais aprofundado, no entanto, mostra que se trata do relato de busca de justiça e amor de um pai para com uma...

‘O Homem dos Sonhos’: criativa sátira sobre fenômenos midiáticos

Quando li esse título a primeira vez, pensei que deveria se tratar de mais uma história patriarcal romântica e eu não poderia estar mais enganada. Dirigido por Kristoffer Borgli e protagonizado por Nicolas Cage, “O Homem dos Sonhos” aborda de forma discreta o fenômeno...

Como ‘Madame Teia’ consegue ser um fiasco completo?

Se os filmes de heróis da Marvel vêm passando por um período de ócio criativo, indicando uma possível saturação do público em relação às histórias, a Sony tem utilizado os “pseudos projetos cinematográficos” do universo baseado em propriedades do Homem-Aranha para...

‘Bob Marley: One Love’: a vulnerabilidade de uma lenda

Acredito que qualquer pessoa no planeta Terra sabe quem é Bob Marley ou já escutou alguma vez as suas canções. Se duvidar, até mesmo um alienígena de passagem por aqui já se desembestou a cantarolar um dos sucessos do cantor jamaicano, símbolo do reggae, subgênero...

‘Ferrari’: Michael Mann contido em drama sobre herói fora de seu tempo

Coisa estranha: a silhueta de um homem grisalho, a linha do cabelo recuando, adorna um balde de pipoca. É Adam Driver como Enzo Ferrari, em uma ação de marketing curiosa: vender o novo filme de Michael Mann como um grande blockbuster para a garotada. Jogada inusitada,...