Na última semana, começou em Manaus, o tradicional Festival Varilux de Cinema Francês no Cinema de Arte do Cinépolis do Ponta Negra. Diferente do ano passado que tinha apenas duas sessões diárias, a edição 2018 conta com quatro sessões diárias, com 21 filmes em 13 dias de festivais. A edição deste ano também apresentou uma seleção diversificada de produções, muitas delas focadas em questões políticas, sociais e culturais, com temáticas relacionadas ao LGBT, universo feminino, intolerância e humanismo. Outra novidade no festival, refere-se a presença de alguns gêneros cinematográficos até então inéditos: a ficção científica, o terror e a animação marcaram presença para agradar seus seletos fãs.

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O Amante Duplo, thriller erótico de François Ozon, por sua vez, recebeu a incumbência de ser o carro chefe do festival, inclusive fezendo parte da logomarca do festival. Mantendo a tradição do ano passado, quando o festival apresentou um clássico da sétima arte, o musical Duas Garotas Românticas (1967) de Jacques Demy, a escolha deste ano não poderia ser mais adequada ao contexto político turbulento em que vivemos: Z de Costa-Gravas, um marco do cinema político que completa 50 anos em cópia restaurada.  O Cine Set esteve presente no festival e apresenta um pequeno resumo e análise de quatro filmes vistos dentro do Festival, nesta primeira parte.

O Poder de Diane, de Fabien Gorgeat

Entre sua vida festeira e independente, Diane (a ótima Clotilde Hesme) decide ser barriga de aluguel para um casal de amigos. Ao mesmo tempo em que a gestação se desenvolve, ela conhece Fabrizio (Fabrizio Rongione), um eletricista com quem mantém um relacionamento amoroso. O Poder de Diane é um filme que transita muito bem entre o humor e o drama e jamais esconde que a real força (e poder) da sua produção reside na sua protagonista principal, uma das personagens femininas mais interessantes, surgidas nos últimos anos no cinema mundial. É nela que o roteiro ágil de Gorgeat estabelece o seu grito de liberdade feminina, revelando uma mulher que desabrocha emocionalmente para vida, longe das convenções sociais machistas.

Há planos bonitos que conduzem a protagonista nos seus momentos introspectivos – como a cena singela da piscina – e a relevância de inverter os papéis masculinos e femininos dentro do filme, ao mesmo tempo que toca na polêmica sobre a barriga de aluguel. Pena que a produção fica apenas na vontade de discorrer sobre estes assuntos, jamais os aprofundando com a devida qualidade. Há uma nítida indecisão do roteiro, em qual drama, discorrer: o embate entre Fabrizio e o casal de amigos ou aprofundar os sentimentos e desejos de Diane em ser mãe. É visível que dentro do seu empoderamento feminino e na força motriz da sua protagonista, é que residem as qualidades e defeitos do longa.

O que se destaca: a belíssima atuação de Clotilde Hesme; temáticas relevantes e a cena final;

O que atrapalha: Falta ousadia por parte do roteiro indeciso em desenvolver e explorar as temáticas relevantes.

Marvin, de Anne Fontaine

Entre os filmes do Varilux, sem dúvida nenhuma, Marvin de Anne Fontaine é o mais ambicioso. Semelhante a clássica música dos Titãs, o protagonista do título – encarnado pelo promissor Finnegan Oldfied – come o pão que o diabo amassou na sua trajetória de autodescoberta como um rapaz da província francesa, que na infância sofreu bullying na escola e viveu num lar familiar disfuncional. Na adolescência, ele encontra no teatro, a resposta para expressar suas emoções reprimidas. A principal qualidade de Fontaine (do ótimo Agnus Dei) é a sobriedade e o humanismo como conduz sua narrativa do comic to age queer, da descoberta da nossa identidade e sexualidade frente aos conflitos.

Aqui, a jornada da libertação espiritual e sexual de Marvin ganha um tratamento introspectivo eficiente através da narrativa não linear imposta pela diretora, fragmentando o passado e o presente de Marvin, associando esta ideia, a teatralidade como expurgação das dores emocionais. O elenco é um grande diferencial: além de atuação irrepreensível de Oldfield, a sua versão mais nova, Jules Porier é um belissimo achado, assim como Grégory Gadebois como o pai do personagem. Sua cena de reencontro com o filho é uma das cerejas do bolo da produção. Infelizmente Marvin sofre dos excessos de clímaxes narrativos que nunca são bem resolvidos. Uma delas é a DR familiar no último ato que funciona apressado e fora de sintonia. Marvin ainda tem a participação especial da musa Isabelle Hupert interpretando ela mesma.

O que se destaca: elenco; a cena de reencontro entre Marvin e o pai

O que atrapalha: a falta de foco no clímax dramático familiar

O Amante Duplo, de François Ozon

Poucos cineastas franceses me interessam tanto hoje no cinema francês, quanto o polivalente François Ozon. É impressionante como ele mantém uma ótima regularidade de qualidade nos seus últimos filmes. O Varilux parece também gostar do diretor: em 2017 passou ótimo Frantz e este ano O Amante Duplo é o destaque do festival. Nele, o cineasta francês cria um thriller de suspense erótico, repleto de simbolismos e discussões psicanalíticas sobre a sexualidade humana, que o aproximam dos ótimos suspenses pastiches de De Palma lançados na década de 80.

No filme, Marine Vacht é Chloé Fortin, uma mulher que sente constantes dores no ventre e só passa a melhorar quando se consulta com o psicanalista Paul Meyer (Jeremy Rénier), com quem desenvolverá uma relação afetiva. O problema é que o médico tem um irmão gêmeo também psicanalista Louis Delord (Rénier), por quem se atrai fisicamente. O Amante Duplo mergulha em temas como perversidade, fetichismo e prazer, encenados com um vigoroso apuro estético.

O plano-detalhe que abre o filme é ousado e os 15 minutos iniciais da produção são filmados com um jogo de enquadramentos fantásticos. A trama realmente escorrega nos seus excessos, sua trama rocambolesca é de uma cafonice absurda, que funciona como um guilty pleasure, a nível dos clássicos do Supercine. Pessoalmente, apesar de todo o pastiche despudorado, gosto muito de como o suspense é concluído no ato final. Amante tem toda carga sensual, erótica e masoquista que o universo de 50 Tons de Cinza tentou, mas não conseguiu desenvolver no cinema.

O que se destaca: Plano-detalhe da abertura; o mistério do suspense erótico e as belas imagens do cinema de Ozon

O que atrapalha: roteiro excessivamente rocambolesco  – por mais que goste de Ozon ele está longe de ser um artesão do suspense como De Palma

O Orgulho, de Yvan Attal

Neila Salah (a super carismática Camélia Jordana, que ganhou o César de atriz revelação pelo filme), é um jovem da periferia, de descendência árabe que ingressa numa renomada e tradicional faculdade de direito de Paris. Logo no primeiro dia, ela bate de frente com o professor Pierre Mazzard (Daniel Auteuil, o ótimo como sempre, o Ricardo Darin francês), um mestre de métodos controversos e ideologias arcaicas. Os dois acabam se unindo para trabalharem juntos em um prestigioso concurso de direito. É difícil dentro do Varilux, algum outro filme tirar o título de filme mais cômodo e simpático de O Orgulho, o famoso feel good movie entre professor-aluno ou mentor-pupilo, que segue a linha fiel do convencionalismo da fórmula da industrial hollywoodiana já vista em filmes como O Diabo Veste Prada e o Gênio Indomável.

 Yvan Attal trabalha sua narrativa com tanta eloquência e consciência do que têm em mãos, que é difícil você não ser seduzido com as mensagens nas entrelinhas do seu texto – a linguagem como arma para enfrentar o preconceito e a necessidade de lidar com o nosso determinismo emocional para sair da zona de conforto – a dinâmica dos personagens por meio da ótima química entre Auteuil e Camélia e os diálogos conectados com as representações sociais e culturais do mundo atual. É tudo bem calculado dentro do seu ritmo empolgante.

É claro que não se pode esperar grandes profundidades dentro do texto mais do mesmo, cheio dos clichês mais convencionais para emocionar o público – inclusive com aquele conflito dramático no último ato só para criar o melodrama. No contexto geral, funciona como uma dramédia agridoce adorável, ideal aos amantes de Intocáveis (2011), porém já visto milhares de vezes no cinema. Agora é só aguardar o remake americano.

O que se destaca: os diálogos saborosos, as belas atuações e narrativa dinâmica cheia de boas intenções

O que atrapalha: o roteiro esquemático com direito a todos os clichês melodramáticos de uma produção hollywoodiana