A cena mais incendiária e impactante da série Cara Gente Branca da Netflix ocorre no quinto episódio da temporada. Vemos uma animada festa universitária na qual os personagens estão cantando junto com a música, um rap. De repente, a voz na música menciona a palavra “nigger”, o pior epíteto racial que se pode dizer a um negro nos Estados Unidos. Um rapaz negro se ofende quando um colega branco canta a música e menciona a palavra. O rapaz branco responde: “Mas está na letra da canção!” e depois emenda um discurso na veia daquele já conhecido papo de “O mundo anda muito chato e coisa e tal”… Logo se inicia uma discussão generalizada. O rapaz negro diz “É por isso que não se deve dizer ‘nigger’”. A polícia adentra o recinto. Uma arma é apontada. Adivinha na direção de quem?

A série, baseada num filme homônimo de 2014 (o qual, confesso, não assisti) não possui o menor medo ou pudor de analisar a questão do racismo dentro da sociedade americana. E o faz dentro de um microcosmo que, na teoria, deveria ser esclarecido, iluminado, superior – o universitário. O seriado se passa na fictícia universidade Winchester, onde a maioria dos alunos é branca, porém o reitor é negro. Os dez episódios giram em torno de dois incidentes de racismo explicito, o da festa já mencionada e outra festa no primeiro episódio, onde numa fraternidade de alunos brancos, os convidados se fantasiam de negros e usam “blackface”, ou seja, com os rostos pintados.

A abordagem do criador/produtor Justin Simien – também diretor e roteirista do longa – é incisiva, cínica e complexa. Não se trata apenas de mostrar o racismo dos brancos contra os negros, mas também como as próprias pessoas de cor e de outras etnias reagem a ele, como o problema racial afeta relacionamentos interpessoais e como os indivíduos se veem dentro da sociedade. Sociedade esta que, apesar de parecer tolerante, opera num grande jogo de hipocrisias ao lidar com o problema.

Porém, Simien e seus roteiristas, diretores e atores exploram essas questões com humor, sagacidade e diálogos espertos, e sob vários pontos de vista. Há uma protagonista, a radialista Sam (Logan Browning), apresentadora do programa “Cara Gente Branca” que dá título à série. Sam é militante da causa negra e possui pontos de vista fortes. Mesmo assim, começa a experimentar o racismo de forma diferente quando seus amigos descobrem que ela está namorando um rapaz branco, Gabe (John Patrick Amendori). As opiniões de Sam frequentemente entram em conflito com as da amiga Coco (Antoinette Robertson). O sonho de Coco não é o de mudar o mundo, como Sam, mas de usar o sistema a seu favor e ser assimilada dentro da sociedade.

Outro personagem de destaque é o filho do reitor e popular astro do esporte Troy (Brandon P. Bell), namorado de Coco que concorre na eleição do corpo estudantil. O garoto de ouro é colocado em posições difíceis por causa dos dois incidentes da temporada. Já o politizado Reggie (Marque Richardson) se torna alvo do racismo no já mencionado episódio 5, dirigido pelo consagrado Barry Jenkins de Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016), que agora explora outra faceta da experiência de um homem negro nos EUA. E o jovem repórter Lionel (DeRon Horton) acaba tendo de noticiar alguns fatos explosivos da vida na universidade ao conviver com os demais personagens. De quebra, ele ainda por cima é gay e não tem coragem de se assumir.

Cada um desses personagens ganha seu próprio episódio, e a série não perde nenhuma oportunidade de provocar o espectador. Há cenas de sexo – inclusive nudez frontal feminina – além de muitas referencias à história dos negros americanos, paródias do seriado Scandal e do filme 9 e ½ Semana de Amor (1986), e alfinetadas no ativismo dos personagens – a certa altura um dos personagens afirma: “Poxa, vocês só reclamam!”… Sobra até para o Quentin Tarantino, num instante de quebra da quarta parede no qual parece que a série está pregando sua mensagem. A narração cínica, à la Dogville (2003), que abre os episódios, também é engraçada, e a voz é do ator Giancarlo Esposito, famoso em tempos recentes como o Gus Fring de Breaking Bad e Better Call Saul.

Os diferentes pontos de vista, a pequena duração dos episódios – cerca de meia hora – o humor inteligente e às vezes ácido, e as atuações dos atores, habitando personagens bem delineados – os destaques sendo Browning, Robertson e Horton – tornam Cara Gente Branca divertido e ajudam o espectador a assistir a tudo de uma vez, como um grande filme. Porém, acima da diversão, fica com o espectador a visão sem enfeites e suavizadas de um problema que a sociedade americana simplesmente não consegue resolver. Talvez algum historiador no futuro use a série como exemplo do que significava viver no complexo ano de 2017, no qual as pessoas muitas vezes se viam “pisando em ovos” culturalmente, mas também no qual vozes que antes não eram ouvidas e/ou reconhecidas passaram a ser. A série demole a ladainha do “racismo reverso” que ainda teima em aparecer em discussões do tema, e mostra como a ideia do “caldeirão cultural” norte-americano é uma ilusão: em Cara Gente Branca vemos um caldeirão entornando, uma dramatização da desunião, das diversas formas como as pessoas encontram formas de se segregarem. Em meio ao humor, aos diálogos e aos dramas românticos da temporada, aquela cena do episódio 5 é o que mais fica na memória. Aquela cena, impactante e ao mesmo tempo ridícula, talvez seja um retrato da confusão americana, e por que não, mundial, de hoje.