Nas últimas décadas, os filmes de zumbis foram explorados a exaustão pelo cinema americano e por isso nos últimos anos encontram-se em processo de definhação por completo. O nível norte-americano baixo, neste período, contribuiu para a superestimação de alguns filmes como Zombieland e Madrugada dos Mortos e não poupou nem o mestre dos mortos-vivos, George Romero, de cometer o seu maior pecado capital no gênero com A Ilha dos Mortos (2009). Até mesmo a série queridinha do público, The Walking Dead, nas últimas temporadas tem estado em um processo acelerado de decomposição e o seu fedor nauseante de falta de criatividade sentido a distância pelo público.

Pelo menos, 70% das produções americanas de zumbis é digna de uma de uma colonoscopia com arame farpado. Por isso, os melhores trabalhos na temática nas últimas décadas, vieram de fora do solo americano: o neozelandês Fome Animal (de Peter Jackson antes de virar um Hobbit hollwoodiano), os britânicos Extermínio (2002) e Todo Mundo Quase Morto (2004); o espanhol REC (2007); o divertidíssimo brasileiro Mangue Negro (2008) e o ótimo coreano Invasão Zumbi (2016). Todos eles, revelaram que a temática apocalíptica morta-viva ainda tinha fôlego para histórias.

O australiano Cargo, da dupla estreante Ben Howling e Yolanda Ramke, adquirido pela Netflix e distribuído internacionalmente na plataforma de streaming, tinha tudo para adentrar nesta categoria acima, afinal é baseado em um curta-metragem (que você pode conferir no fim do texto) muito eficiente de 2013 dirigido pela própria dupla, com duração de 7 minutos que mostrava um homem utilizando estranhas estratégias para sobreviver com a sua filha bebê (sua carga mais preciosa, dando razão ao título original), em um apocalipse zumbi na Austrália. Para o longa-metragem, o herói virou Andy, vivido pelo britânico Martin Freeman (o jovem Bilbo bolseiro da trilogia do O Hobbit), que, após a esposa ter sido contaminada por um vírus, luta para sobreviver no meio do deserto australiano ao lado da sua pequena filha Rose.

A ambientação de mortos-vivos em meio a um cenário desértico e apocalíptico poderia ser o diferencial de Cargo como obra promissora em discutir as relações do amor parental dentro de uma jornada emotiva introspectiva. Infelizmente, a produção segue a linha de curtas-metragens de terror recentes como Quando as Luzes se Apagam e Mama que quando transformadas em longas, não dimensionaram o seu argumento simples para atender um material denso de mais de 90 minutos.

Sim, o roteiro de Howling e Ramke até se arrisca em alguns momentos ao criar um universo de mitologia própria naquela realidade apocalíptica. Ideias de que a transformação de um infectado ocorre em 48 horas após a mordida e a existência de kits distribuídos pelo governo para “controlar” previamente os efeitos da doença – e torná-la durante o processo menos sofrida para o infectado – deixam o longa plausível e permitem o espectador se envolver com os dramas dos seus personagens que lutam pela sobrevivência. O próprio comportamento estranho que “os zumbis” apresentam é criativo, e a sua caracterização física através de uma aparência secretora – que sai dos olhos e bocas –  é grotesca e marcante.

Tudo isso alinhado a uma fotografia exuberante, que se apropria muito bem das luzes do ambiente árido australiano rural, para criar uma atmosfera opressora através de cenários desoladores que expõem a imensidão do lugar frente a fragilidade humana, ajudam a dar um toque diferencial ao longa, fugindo da caracterização dos filmes de zumbis passados em contextos urbanos. Outro bom diferencial é a narrativa intimista muito mais preocupada com os arcos dramáticos dos personagens, do que buscar os “porquês” do que realmente aconteceu naquela realidade, evitando querer ser auto-explicativo. É corajoso ver o filme evitar esses maneirismos ou se render a uma fórmula da ação e violência zumbi, apenas para agradar um tipo de público que exige dentro do subgênero, que abordagens como essa, sejam levadas em conta.

Ainda que se arrisque em determinados pontos da sua narrativa, Cargo parece sentir o peso da sua própria carga dramática que coloca nas costas. Curiosamente, este problema surge no ponto em que o curta e o longa mais se distanciam que é a abordagem espiritual, recaindo na figura da garota aborígene Thoomi, a responsabilidade de ser o fio condutor da temática. Sua subtrama dentro do plot maior do filme, é responsável por aquilo que ele têm de mais criativo como também aqueilo que é pior representado ou trabalhado.

Ramke e Howling perdem uma grande oportunidade de elevar a discussão sobre o instinto de sobrevivência e o amor paternal dentro de um apocalipse zumbi para uma esfera mística, que envolve rituais aborígenes. Cargo neste ponto pincela ideias pertinentes de debater o espiritismo frente a uma realidade de medo e horror, só que elas no geral são mal trabalhadas pela apresentação rápida, superficial e sem muitas explicações.

O próprio filme não estabelece uma boa sintonia entre o esqueleto mais sensível do seu drama familiar – a relação da resiliência entre o amor fraternal de Andy e Rose – com sua estrutura de maior potencial – e relegada a segundo plano –  que é Thoomi e as tradições dos povos aborígenes em um mundo de pós-apocalipse. Enquanto a primeira conquista e faz o público encarar o enredo com outros olhos, a segunda é marcada pelo tédio, e por atalhos e soluções fáceis de roteiro que diminuem a própria intensidade. Inclusive a própria montagem do filme deixa claro que as duas tramas concomitantes são encaixadas displicentemente, criando um ritmo distanciado entre tempo e espaço no filme. São problema de execução que realmente incomodam.

Pelo menos no drama familiar, o polivalente Martin Freeman empresta um calor afetivo necessário ao papel. Para quem acompanha o ator no seriado britânico Sherlock sabe do seu enorme carisma. Seu Andy é dotado de um olhar ambíguo, tanto de desespero como de otimismo, que nos deixa preocupados pela sua fragilidade – biótipo e o jeito de Freeman contribuem para isso – ao mesmo tempo fascinado pela sua obstinação e amor pela filha. Para um ator tão relegado a papéis como coadjuvantes, é ótimo vê-lo finalmente como protagonista.

No fundo, Cargo se esforça para fugir da previsibilidade dos filmes de apocalipses de zumbis, mas sua iniciativa esbarra na sua falta de personalidade de entregar boas reflexões, ficando aquém do prometido.