É cada vez mais inevitável fugir do debate sobre lugar de fala no cinema brasileiro. No caso de Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, a co-produção Brasil-Portugal foca na representação da etnia krahô e tem como saída desse impasse a empatia pelo povo apresentado nas telas e a imersão em sua cultura como pontos que evitam (ou, pelo menos, minimizam) julgamentos quanto ao fato dos diretores Renée Nader Messora e João Salaviza não serem nativos.

O drama do jovem Ihjãk (Henrique Ihjãk Kahô) é intrigante: ele é assustado pelo luto da morte do pai e o despertar de uma sensibilidade espiritual que o qualifica para ser pajé. Ao mesmo tempo em que os diretores se preocupam em refletir a beleza e a importância da vida comunitária dos krahô, o conflito do protagonista contra forças íntimas o individualiza, afastando Chuva… das produções puramente ilustrativas acerca dos costumes de um povo, nos quais o mesmo é uma massa uniforme, cujas diferenças surgem ao espectador apenas enquanto estratificação social.

A colaboração direta entre Messora, Salaviza e representantes da aldeia na construção do roteiro garante rupturas interessantes. A figura do indígena não é encoberta por uma aura sobrenatural que o desumaniza, nem mesmo o pajé ancião, a mais emblemática dentro do universo krahô. Também é perceptível que Ihjãk e os demais personagens (com destaque para a esposa Kôtô, interpretada habilmente por Raene Kôtô Krahô) têm personalidades próprias e ricas. O único porém é a redundância de alguns diálogos – os quais eram parcialmente improvisados pelos atores, todo membros da etnia.

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos tem um lugar de fala – ou seja, o lugar simbolicamente ocupado pelo locutor em um cenário enunciativo – que propõe um diálogo entre a visão dos diretores e dos indígenas, que conviveram por longos períodos de tempo (Messora visitou a aldeia Krahô ao longo de oito anos e Messora, por meses) e construíram as linhas gerais do roteiro juntos, gerando empatia no resultado final. É um esforço duplo, que denota atenção ao objeto escolhido para a narrativa, essencial para a concepção de qualquer bom roteiro, mas também humanista, posto que, no atual estado das coisas, qualquer representação é melhor que nenhuma representação.

O longa já se justifica só pelos belos registros das tradições – danças, canções ritualísticas e a língua krahô são alguns exemplos. Mas sua busca por equilibrar reverência e as necessidades da boa construção fílmica (o trabalho de som e a fotografia são os fortes nesse sentido) potencializa que o espectador queira saber mais sobre as diferentes culturas indígenas e, por conseguinte, gera também o interesse para com as produções realizadas por membros das etnias contando suas próprias narrativas.