Persona é possivelmente o trabalho mais discutido de Ingmar Bergman. Não são poucos os que se debruçam sobre a obra na tentativa de explicá-la. Entretanto, como a arte em si, é impossível buscar uma única e verdadeira compreensão. A liberdade tomada pelo diretor na construção do filme reflete em uma experiência aberta e plural que instiga o espectador uma variedade de sentidos. Persona foi onde Bergman mais se permitiu o experimental – o resultado foi de exuberância artística. Modesto nas bilheterias, o filme ganhou longos artigos em importantes revistas especializadas na época e, até hoje, desafia quem se propõe a desvendar suas imagens.

No verão anterior ao lançamento de Persona nos cinemas, Bergman planejava filmar o roteiro de “Os Canibais”, texto que depois serviu de base para “A Hora do Lobo”. Infelizmente, o projeto foi cancelado em razão da forte pneumonia que obrigou o diretor a ficar internado por meses. Impossibilitado de trabalhar, o sueco continuou a escrever para manter o processo criativo vivo. Nesse período, o cineasta conheceu Liv Ullmann, quem logo ganhou seu fascínio. Foi a rápida amizade entre a atriz norueguesa e Bibi Andersson que despertou em Bergman o primeiro insight para o filme: a estranha semelhança entre elas.

Mesmo internado, Bergman negociou a realização do filme com o produtor e as atrizes. Contudo, devido a fragilidade física do diretor, muito debilitado e sem sinais de melhora no quadro, as chances de Persona sair do papel pairava na incerteza da saúde do cineasta. Segundo o diretor, o início das gravações foram um desastre: os resultados eram péssimos. Somente depois de muitas tentativas, eles conseguiram acertar o passo nas filmagens da sua obra-prima.

Poema em Imagens

O filme é sobre duas mulheres: Elisabet Vogler (Liv Ullmann) uma famosa atriz e Alma (Bibi Andersson) uma tímida enfermeira. Durante uma de suas performances no teatro, Elisabet “perde” a voz. Permanecendo em completo silêncio sem razão física aparente, a atriz é internada em uma clínica psiquiátrica. Sem melhora, a médica responsável por ela sugere à enfermeira Alma, como alternativa de tratamento, que passe algum tempo em uma ilha isolada cuidando de Elisabet. Sozinhas, as mulheres começam a compartilhar seus íntimos no silêncio de uma e na histeria da outra, ao extremo de suas identidades começarem a se fundir.

Persona sugere muitas coisas. Há uma infinidade de possibilidades nas longas cenas, bem como no silêncio de Elisabet Vogler. Dentre as mais variadas suposições, talvez a exposição da ambivalência humana seja destaque. Elisabet e Alma confundem-se em razão de uma aparente semelhança física, ao mesmo tempo em que ocupam lados opostos. A atriz permanece em absoluto silêncio, a enfermeira verbaliza em excesso. Vogler é experiente e cínica, Alma preserva certa inocência e culpa. As mulheres são complementares na medida que possuem aspectos completamente opostos, duas faces da mesma moeda. Demonstram a ambiguidade da identidade humana, que pode ser ruído ou silêncio, amor e ódio ao mesmo tempo.

À medida em que Elisabet não demonstra sinais de voltar a falar, Alma parece tentar preencher o vácuo do silêncio falando cada vez mais. Justamente nessa ansiedade a personagem de Bibi protagoniza o momento mais memorável do filme: durante um monólogo de quase cinco minutos, a enfermeira Alma conta a orgia vivida por ela nas férias de verão. Com detalhes, a personagem narra o encontro sexual dela e sua amiga com dois estranhos em uma praia, e o posterior aborto. Submersa em vergonha e auto-repressão, somos confidentes “daquele ato de transgressão” inconcebível para uma mulher. Ela se repreende, mas também se impõe. Ainda que tomada pela culpa, o sentimento não a impede de falar. Muito se aponta o erotismo da cena, mas é a liberdade que deslumbra.

Não lembro de nenhuma outra experiência no cinema em que uma mulher falou tanto sobre a própria sexualidade sem soar falso. Bibi teve participação essencial nesse produto final, não apenas pela interpretação monumental: Bergman queria cortar a cena por achá-la obscena demais, mas a atriz insistiu em revisar o texto tão evidente ter sido escrito por um homem. O resultado é um dos planos mais instigantes, provocadores do cinema.

Enquanto trabalhava em Persona, Bergman queria introduzir o que ele definiu como “poema em imagens”. O resultado disso foi exatamente os minutos iniciais do longa: a sequência aparentemente composta por imagens desconexas da narrativa principal, releva sentimentos e simbolismos presentes ao longo da carreira do diretor, como exemplo o frame da aranha, usada como personificação de Deus em “Através de um Espelho”. Não apenas formado por velhas ideias do diretor, o conjunto de cenas também expressa o espírito dele na criação. Bergman surge na forma de um garoto, que ora aparece em um leito, ora tentando ler um livro. A caracterização do criador como um menino reflete seu estado vulnerável durante parte do processo criativo do filme, suas ansiedades e dúvidas nos meses que permaneceu no hospital.

O mestre sueco sempre se mostrou fã de close-ups com excelente uso da técnica, mas, foi em Persona que ele levou o plano para outro patamar. Com inserção quase orgânica do recurso, o close-up é o instrumento chave no desdobramento das personagens, revelador da profundidade íntima das mulheres. É parte integrante do ritmo conduzido por Bergman e pelo diretor de fotografia Sven Nykvist. Parte importante no desenvolvimento do filme, a parceria entre eles é grandiosa. Assim como para o diretor, para Sven o filme também é seu auge. Com uma das fotografias mais expressivas da filmografia de Bergman, tal como do cinema como um todo. Persona é dona de uma atmosfera tão particular que só a perfeita sintonia entre os dois seria capaz de produzir. Nas próprias palavras de Sven Nykvist, no filme “os rostos, as emoções, o clima, o precedem”.

Persona ainda marca o primeiro filme do diretor com sua parceira artística mais significativa, Liv Ullmann. Vinda do teatro escandinavo, a atriz mostra o estrondo que é alcançado o sucesso internacional em uma oportunidade de ouro. Bibi Andersson, por sua vez, já era parte do seleto grupo de profissionais recorrentes nos trabalhos de Bergman. Quase sempre em papéis de menor destaque, a obra é seu tão merecido momento de brilhar. E Bibi não fez por menos: nada abaixo de excelência para descrever sua performance faz jus. O espectador testemunha um espetáculo de interpretação das duas atrizes.

Diante da imensidão que Persona representa, é impossível saber a resposta sobre seu verdadeiro significado, talvez nem exista um. A verdade é que para o cineasta a obra é seu apogeu, a perfeita tradução daquilo que o cinema representa ou que ele pode fazer. No livro Imagens, Bergman afirmou que o longa salvou sua vida. Nas palavras dele:

“(…) Se eu não tivesse encontrado forças para fazer o filme, eu provavelmente estaria arruinado. (…) Ao trabalhar com total liberdade, eu toquei segredos indizíveis que só o cinema pode descobrir”.

Diferente dos seus trabalhos anteriores, nos quais era limitado pelos interesses dos produtores, é com Persona que o diretor atingiu a autonomia artística. Trabalhando com total liberdade nunca vivenciada antes, Bergman entregou um trabalho em que talvez mais importante que o significado por trás de uma narrativa pouco penetrável, está sua dimensão simplesmente enquanto realização fílmica. Cinema puramente na forma, não suas significações. Com Persona, Bergman afirmou ter chegado o mais longe que ele poderia, a certeza é que ele nos levou junto.