Morar em uma cidade com amplo acesso ao cinema tem suas vantagens, mas há um quê quase romântico de conferir filmes quando se está longe de casa. Nesse sentido, viajar para um festival é um sonho louco para qualquer cinéfilo: a mistura de um cronograma recheado de estreias com os bônus de um novo ambiente. 
 
Depois de Cannes, devidamente registrada neste site, minha segunda viagem desta natureza me trouxe a Karlovy Vary (se fala exatamente como se lê, não se preocupe), uma cidade pitoresca na República Tcheca, não muito longe da fronteira com a Alemanha, cujas águas termais lhe tornaram uma das primeiras cidades do mundo com uma alta concentração de spas (Cine Set é geografia também). 
 
Chegar até ela, contudo, não foi exatamente um passeio, apesar de ter tido um começo um tanto quanto tranquilo. Diferentemente das minhas viagens de lazer, meu voo não partia ao raiar do dia de um aeroporto longínquo. Ao invés disso, minha partida estava marcada para um horário bem humano saindo de um aeroporto super conveniente (Gatwick).  
 
Cheguei super adiantado e não havia nem fila no check-in. Peguei um café e achei um banco genial com tomadas onde eu me sentei para o fazer o que não tive tempo de fazer o mês inteiro: meu cronograma de filmes para o festival. Em mais ou menos uma hora, eu tinha uma versão praticamente fechada para cinco dos oito dias de festival – “praticamente fechada”, pode rir, eu deixo – e estava pronto para ir para o portão de embarque. 

 
Fácil. Fácil demais. Vale lembrar que em Cannes, uma alteração dos trens mudou todo o meu rolê – fato que não pude deixar de lembrar quando vi que meu voo, que deveria sair às 14h20, só teria o portão informado às 15h05. Com todo esse atraso, acabamos saindo de Londres às 16h35 e chegando devidamente atrasados em Praga.  
 
Na fila do embarque, no entanto, vi uma moça com uma camiseta da Agnès Varda e uma bolsa do Festival de Berlim e puxei papo porque achei impossível alguém com esse look voando para Praga no final de junho não estar indo para Karlovy Vary. Não só eu estava certo, como ela também pegaria o mesmo transfer para o festival que eu, o que resultou numa conversa que durou quase o trajeto inteiro (2h). 
 
 
O motorista nos deixou no Hotel Thermal, sede do festival. Tentei argumentar que o departamento de imprensa do evento tinha arranjado para que minhas credenciais fossem deixadas no meu hotel e que eu deveria ir direto para lá, mas ele deu de ombros e eu acabei fazendo o resto do caminho a pé. 
 
A essa altura, não só a cerimônia de abertura já tinha terminado há horas (é, não foi dessa vez que vi a Julianne Moore) como também o jantar de boas-vindas do time do GoCritic!, programa de fomento de jovens críticos do site Cineuropa que me selecionou para cobrir o festival, já estava em vias de terminar.  
 
Me restou andar pelas ruas tchecas atrás de algo para comer e, com quase todos os restaurantes fechados, tive que me contentar com um sanduba superfaturado de salsicha na calçada antes de voltar para o hotel. Comecei a me arrumar na cama e Daniel, outro membro do time do GoCritic! e meu colega de quarto, chegou. Daniel é tcheco e já havia trabalhado no festival, mas esse é seu primeiro ano cobrindo. Acabamos conversando um pouco até capotarmos de sono. 
 
 
O segundo dia – o primeiro com filmes – começou com o pé direito. Acordei e fui tomar café mega reforçado com Daniel no restaurante do hotel. Lá, Neil Young, crítico da revista The Hollywood Reporter e o nosso tutor do GoCritic! no festival, e Veronika, outra participante, se juntaram a nós e eu pude conhecê-los. Seguimos para o hotel para encontrar os dois membros remanescentes: Dunja, a quarta participante, e Vladan, crítico do Cineuropa e responsável pela ponte entre a nossa produção e o site. 
 
O primeiro compromisso do dia foi uma apresentação formal do grupo a Jan Najman, coordenador da imprensa internacional do festival, que nos deu calorosas boas-vindas. Seguimos para a nossa primeira reunião de pauta com Neil e o esclarecimento de algumas diretrizes elencadas nos copiosos emails que ele nos mandou durante a semana anterior. 
 
Meus dois primeiros filmes foram designados por Neil e seriam os únicos do dia: o “Projectionist” (da Ucrânia) e “Last Visit” (da Arábia Saudita), ambos exibidos em sessões para a imprensa em salas reservadas para isso dentro do Hotel Thermal. Minha missão era assistir ambos e escrever sobre um – ainda bem, pois não senti a mínima vontade de escrever sobre o ucraniano. Terminei o dia na sala de imprensa fazendo a crítica e saí de lá 1h da manhã direto para a cama. 
 
O dia 3 começou com duas variações. A primeira é que eu veria uma sessão pública, realizada em um dos cinemas tradicionais de Karlovy Vary, o Drahomíra. A segunda é que a sessão era de um filme de cuja existência eu já sabia: “Varda par Agnès”, o último filme da aclamada cineasta belga – e eterna musa deste crítico -, Agnès Varda. Cheguei cedo, pedi um café e entrei na sala com tranquilidade. 
 
 
A sessão foi muito emocionante. Tal como o seu “Visages Villages”, que vi com a diretora presente no Festival de Cannes em 2017, a lágrima chegou na borda do olho. De lá, nos reunimos novamente com Neil e, quando todos se foram, aproveitando o tempo livre, acabei almoçando com Veronika para nos conhecermos melhor, já que o único membro do GoCritic! com quem tinha passado tempo considerável até então era Daniel. Consegui uma soneca depois do almoço e acordei apenas para jantar com a equipe num restaurante ótimo, o Charleston (a uns oito minutos a pé do Hotel Thermal). 
 
No final das contas, o dia 3 só teve um filme, então o cronograma do dia 4 precisou compensar com quatro. Os dois primeiros vieram de uma paulada só na Congress Hall do festival, exclusivamente para a imprensa: o turco “La Belle Indiference” e o belga “Patrick”. A turma se reuniu com Neil novamente e eu precisei sair correndo para o Teatro Municipal para ver “Be Prepared!”, um filme tcheco feito em 1923 sobre o movimento de escoteiros. 
 
 
Eu não tinha particular interesse na produção, e sim no local de exibição: todos os críticos com quem troquei ideias me recomendaram conferir o teatro. Além do mais, eu estava gostando da possibilidade de descobrir cinemas tradicionais fora do universo da imprensa – coisa que eu não consegui fazer em Cannes dois anos atrás, por exemplo. O lugar valeu totalmente a pena, porém o filme chegou a queimar em um determinado momento – ninguém se feriu, ainda bem. 
 
Almocei e voltei para o Hotel Thermal para uma reunião a sós com Neil para receber feedback dele da minha crítica de “Last Visit”. Ele não fez muitas notas, mas de toda forma, eu fiquei de revisar conforme as que ele havia feito e entregar mais tarde. O dia pesado de programação acabou com um filme brasileiro, “Sem Seu Sangue”, que eu vi no Lazne III – em essência, um salão convertido em cinema no hotel de mesmo nome. 

*O jornalista viajou para o Festival de Karlovy Vary como parte da equipe do GoCritic!, programa de fomento de jovens críticos do site Cineuropa, no qual esta crítica foi originalmente publicada em inglês.

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