How does it feel?” (“Qual é a sensação?”) pergunta Bob Dylan em sua canção mais famosa, a venal e vitriólica “Like a Rolling Stone”, de 1965. 

Pois bem: qual é a sensação de se assistir a Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story, o novo documentário sobre o artista, um dos gigantes da música do século XX, assinado por Martin Scorsese, um dos gigantes do cinema do mesmo período, e que já havia criado um estupendo retrato de Dylan em No Direction Home (2005)? Infelizmente, é ruim – como uma refeição que tem ingredientes demais, foi cozida além do ponto e chega já fria à mesa. 

O que é duplamente triste, já que o ponto de partida para o novo doc (ou falso novo doc, como se verá mais adiante) é ainda mais intrigante que o de No Direction Home, que tratava da transformação de Robert Zimmerman, um garoto judeu de classe média do Minnesota, no gelado meio-oeste americano, em Dylan, o cantor-compositor mais influente e controverso da época mais fecunda do rock, a segunda metade dos anos 1960. Com todo o brilhantismo de NDH, a fase de construção do mito Dylan já havia sido objeto de incontáveis biografias, estudos e filmes (como o fantástico documentário Don’t Look Back [1967], de D.A. Pennebaker, um dos clássicos do cinema direto americano). 

O período retratado em Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story, disponível no catálogo da Netflix, porém, é quase tão importante quanto, e seguia imerso em mistério. Marcando uma espécie de renascimento para o cantor – nos últimos 10 anos, ele havia sofrido um acidente de moto que interrompeu uma triunfal turnê europeia; tentado se livrar da idolatria de fãs e críticos, que criavam pressões insuportáveis sobre a sua carreira; e, na vida pessoal, sofrido todos os percalços de um fim de relacionamento, com a então esposa Sara Lowndes –, a turnê “Rolling Thunder Revue”, montada para divulgar os discos Blood on the Tracks (1975) e Desire (1976) era a primeira empreitada em grande escala do artista desde 1966. E também a reinvenção de Dylan: não mais a “voz de uma geração”, o visionário radical que distribuía farpas e cunhava letras extraordinárias sobre política e a sociedade americanas, mas um entertainer puro e simples – e orgulhoso dessa condição –, que se permitia brincar e ter prazer com o ofício como nunca havia podido, até então. O fato de estar no auge da voz e do magnetismo no palco, além de vir de dois dos maiores álbuns de sua carreira – Blood talvez seja o maior – também ajudava. 

Eis, portanto, mais uma grande oportunidade para desbravar o fenômeno Dylan, entender mais sobre o seu processo criativo, descobrir as ligações, tão importantes, entre o homem, o lugar e a época – todos alvos que o filme eventualmente acerta, mas por muito pouco tempo, preferindo se concentrar em artifícios que só podem significar falta de confiança, por parte dos envolvidos, na qualidade do material que eles tinham em mãos. 

AS RAZÕES DA DECEPÇÃO 

O primeiro deles: Rolling Thunder não é exatamente um documentário. As imagens de abertura, um pequeno clipe do ilusionista e pioneiro do cinema Georges Meliès (já homenageado por Scorsese no filme A Invenção de Hugo Cabret [2011]), mostram que o que vem a seguir não é exatamente um retrato fiel do seu objeto – e o que se segue é um desperdício de tempo e energia criativa em várias ideias equivocadas, que enfraquecem o poder mesmerizante das imagens de concerto – tente ficar indiferente à ferocidade de “The Lonesome Death of Hattie Carroll”, ou, melhor ainda, à dramaticidade dos olhares e gestos de Dylan em “Isis”, talvez a performance mais elétrica do filme. 

Intercalando esses momentos absolutamente fascinantes está uma narrativa canhestra, de humor forçado, que tenta trazer o clima de anarquia criativa da Rolling Thunder para a própria estrutura do documentário: seria esse o Isto é Spinal Tap de Scorsese, uma tentativa de dessacralizar a figura mítica dos astros de rock, mitologia que o próprio diretor alimentou com vigor em filmes como The Last Waltz: O Último Concerto de Rock (1978), sobre The Band, ou Shine a Light (2008), sobre os Rolling Stones? 

É sabido que Dylan sempre quis subverter a forma do documentário – e a representação pública de si mesmo – em suas incursões como diretor de cinema, como provam os obscuros (e impenetráveis) Eat the Document (1972), sobre a turnê europeia de 1966, e Renaldo and Clara (1978), sobre a Rolling Thunder – este último, uma mistura de imagens de shows e vinhetas ficcionais, é a fonte de todas as extraordinárias imagens de concertos e bastidores da nova produção. 

Notoriamente avesso a falar de si mesmo, ou a falar de forma séria sobre si mesmo, Dylan não se faz de rogado e goes for the ride, entregando com fingida naturalidade causos sobre personagens totalmente inventados, como o suposto autor dos registros, um pretensioso autor de filmes arthouse europeus chamado Stefan Van Dorp (vivido pelo performance artist argentino Martin Von Haselberg) – cujas participações são incrivelmente desinteressantes –, ou então eventos fictícios, que adensam a metalinguagem da coisa toda, como a participação de Sharon Stone, no que parece ser um comentário de Scorsese sobre a cultura frívola da celebridade – ou pode ser qualquer outra coisa, porque realmente não importa. 

Martin Scorsese pode ser muito bom no humor – a comédia sarcástica Depois de Horas (1985), ou obras mais inclassificáveis, mas também cheias dele, como O Rei da Comédia (1982) e Vivendo no Limite (1999), mostram um autor seguro no terreno das piadas que fazem doer. Mas humor nonsense simplesmente não é a praia do grande cineasta, e Rolling Thunder sofre com isso. Dylan e Scorsese podem estar se divertindo à beça, imaginando grandes sacadas nesses acenos ao mockumentary, mas, para as pessoas do lado de cá, alheias aos elementos da época que eles pretendem parodiar, essas inserções simplesmente distraem e cansam. 

Também é problemática a questão da autoria das imagens. Todas as cenas que importam em Rolling Thunder – o rico material de shows e cenas de bastidores – foram rodadas pelo cinegrafista Howard Alk, colaborador de Dylan desde Eat the Document, e compõem um acervo impressionante, tanto pela fartura de material quanto pela qualidade: pense em cenas como a visita de Dylan e do poeta Allen Ginsberg ao túmulo de Jack Kerouac, autor de On the Road: Pé na Estrada, influência fundamental na obra de Dylan, com suas composições elegantes, ou em seu instinto perfeito para capturar os músicos em ação no palco. Negar a Alk o mérito por esse trabalho, atribuindo-o ao fictício Van Dorp, só esvazia o filme, mais ainda, de sua atraente humanidade. 

O QUE PODERIA TER SIDO…

Ainda assim, Rolling Thunder vale a conferida, e não só para os dylanófilos. Os paralelos entre o fuzuê da caravana de artistas arregimentada por Dylan para a turnê (desde Ginsberg até luminares do rock, como Roger McGuinn, dos Byrds, e as cantoras Joan Baez e Joni Mitchell, passando pelo ator e dramaturgo Sam Shepard, em uma de suas últimas aparições filmadas) e o estado caótico e paranoide da cultura em 1975 é fascinante, e as apresentações musicais, como eu já disse, falam por si: minha favorita pessoal é o raro, e maravilhoso, registro de Mitchell mostrando a Dylan e McGuinn uma nova composição, em meio a uma festa pós-show. 

Tivéssemos um filme inteiro focado na música de Dylan nessa fase, e suas relações com o espírito da época – a obra mostra o panorama fascinante dos festejos pelo bicentenário de fundação dos Estados Unidos, bem como a amargura da derrocada no Vietnã e do impeachment de Richard Nixon – e Scorsese/Dylan teriam feito outra homenagem à altura do legado monumental do artista. 

Do jeito que está, Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story é mais um tributo a Dylan que compromete o fascínio do personagem com sua adesão ao lado mais arcano e hermético de sua arte, o mesmo deslize cometido por Não Estou Lá (2007), a homenagem ficcional de Todd Haynes, que também perde muito da sua força em devaneios pseudopoéticos sobre Dylan. Que ele é um artista imenso na criatividade e na capacidade de inspirar, eu sei – mas por que as pessoas precisam viajar tanto sobre uma obra que já é tão rica em ideias e significados? 

Respondendo à pergunta no início desse texto, that just doesn’t feel right (isso simplesmente não parece certo). 

* texto original alterado para substituir a equivocada expressão racista humor negro.

 

CRÍTICA | ‘Deadpool & Wolverine’: filme careta fingindo ser ousado

Assistir “Deadpool & Wolverine” me fez lembrar da minha bisavó. Convivi com Dona Leontina, nascida no início do século XX antes mesmo do naufrágio do Titanic, até os meus 12, 13 anos. Minha brincadeira preferida com ela era soltar um sonoro palavrão do nada....

CRÍTICA | ‘O Sequestro do Papa’: monotonia domina história chocante da Igreja Católica

Marco Bellochio sempre foi um diretor de uma nota só. Isso não é necessariamente um problema, como Tom Jobim já nos ensinou. Pegue “O Monstro na Primeira Página”, de 1972, por exemplo: acusar o diretor de ser maniqueísta no seu modo de condenar as táticas...

CRÍTICA | ‘A Filha do Pescador’: a dura travessia pela reconexão dos afetos

Quanto vale o preço de um perdão, aceitação e redescoberta? Para Edgar De Luque Jácome bastam apenas 80 minutos. Estreando na direção, o colombiano submerge na relação entre pai e filha, preconceitos e destemperança em “A Filha do Pescador”. Totalmente ilhado no seu...

CRÍTICA | ‘Tudo em Família’: é ruim, mas, é bom

Adoro esse ofício de “crítico”, coloco em aspas porque me parece algo muito pomposo, quase elitista e não gosto de estar nesta posição. Encaro como um trabalho prazeroso, apesar das bombas que somos obrigados a ver e tentar elaborar algo que se aproveite. Em alguns...

CRÍTICA | ‘Megalópolis’: no cinema de Coppola, o fim é apenas um detalhe

Se ser artista é contrariar o tempo, quem melhor para falar sobre isso do que Francis Ford Coppola? É tentador não jogar a palavra “megalomaníaco” em um texto sobre "Megalópolis". Sim, é uma aliteração irresistível, mas que não arranha nem a superfície da reflexão de...

CRÍTICA | ‘Twisters’: senso de perigo cresce em sequência superior ao original

Quando, logo na primeira cena, um tornado começa a matar, um a um, a equipe de adolescentes metidos a cientistas comandada por Kate (Daisy Edgar-Jones) como um vilão de filme slasher, fica claro que estamos diante de algo diferente do “Twister” de 1996. Leia-se: um...

CRÍTICA | ‘In a Violent Nature’: tentativa (quase) boa de desconstrução do Slasher

O slasher é um dos subgêneros mais fáceis de se identificar dentro do cinema de terror. Caracterizado por um assassino geralmente mascarado que persegue e mata suas vítimas, frequentemente adolescentes ou jovens adultos, esses filmes seguem uma fórmula bem definida....

CRÍTICA | ‘MaXXXine’: mais estilo que substância

A atriz Mia Goth e o diretor Ti West estabeleceram uma daquelas parcerias especiais e incríveis do cinema quando fizeram X: A Marca da Morte (2021): o que era para ser um terror despretensioso que homenagearia o cinema slasher e também o seu primo mal visto, o pornô,...

CRÍTICA | ‘Salão de baile’: documentário enciclopédico sobre Ballroom transcende padrão pelo conteúdo

Documentários tradicionais e que se fazem de entrevistas alternadas com imagens de arquivo ou de preenchimento sobre o tema normalmente resultam em experiências repetitivas, monótonas e desinteressantes. Mas como a regra principal do cinema é: não tem regra. Salão de...

CRÍTICA | ‘Geração Ciborgue’ e a desconexão social de uma geração

Kai cria um implante externo na têmpora que permite, por vibrações e por uma conexão a sensores de órbita, “ouvir” cada raio cósmico e tempestade solar que atinge o planeta Terra. Ao seu lado, outros tem aparatos similares que permitem a conversão de cor em som. De...