Saudade é uma palavra interessante e particularmente nossa. O dicionário a define como o sentimento causado pela distância ou ausência, mas só quem a sente compreende o quanto ela dói e é capaz de deixar cicatrizes. A questão é que nem sempre essas marcas são tão ruins a ponto de não surgirem delas algo proveitoso. Foi assim que nasceu “Tranças”, documentário dirigido por Lívia Sampaio.
A saudade da diretora atende pela netinha dela, que mora com a mãe no interior da Argentina. Depois de inúmeras tentativas de diálogo e audiências para regulamentação de visitas, Lívia decidiu escrever um livro. Entretanto “enquanto escrevia, surgiu a ideia de fazer um filme para ela, que registrasse em imagens, com carinho e beleza, que a família paterna sempre buscou formas de encontrá-la”, comentou a cineasta em entrevista exclusiva ao Cine Set.
Sua intenção era contar “uma história triste, porém real e poética, sem rancor”, disse. Embora fosse uma narrativa particular, Lívia percebeu a importância de agregar pessoas que conheceu durante sua jornada em busca da neta. Assim “o filme sairia de uma esfera caseira e o debate seria ampliado”, contou a realizadora. Foi desse modo que ela se juntou a dois amigos cineastas e começaram a entrevistar pessoas relacionadas ao combate à alienação parental.
Para além da saudade
A alienação parental caracteriza-se como toda interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida por um dos pais ou por qualquer adulto que tenha a criança ou o adolescente sob a sua guarda. O objetivo, na maior parte dos casos, é prejudicar o vínculo com o genitor. Nos Estados Unidos, cerca de 80% dos filhos de pais divorciados já sofreram alienação parental. Enquanto isso, no Brasil, segundo dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o número de processos por alienação parental cresceu de 2.241 em 2016 para 2.365 em 2017.
Esse aumento se deve, em partes, ao conhecimento das leis. Em vigor desde 2010, a lei 12.318/2010 aborda especificamente a alienação parental, mas tem tido audiências no Senado para ser revogada. “É muito importante discutir a temática por diversas questões. Uma delas é que a maioria das pessoas, que está nessa circunstância, não sabe pelo que está passando e dar nome a esse processo torna mais fácil combatê-lo e buscar seus direitos”, afirmou Lívia que convive com a situação há três anos.
É nesse quadro que a diretora encontrou espaço para contar sua jornada. “No Brasil, apesar de haver poucos diálogos sobre o tema e, quando há, serem agressivos, consegui brechas para fazer um filme que abarque vários ângulos e não reforce mais ainda essa guerra sem sentido de adultos, enquanto o que interessa – a vida da criança, do adolescente – se perde entre agressões mútuas de pessoas que devem cuidar e proteger essas crianças e seus direitos” contou.
Superando as dificuldades
O filme levou dois anos para ser concluído. “Esse tempo foi utilizado para buscar imagens de apoio, editar e finalizar “Tranças”. Contei, durante esse processo, com o auxílio de uma equipe técnica que se dedicou, se identificou com o tema e acreditou que era possível”, revelou. Devido às atividades distintas – funcionária pública e diretora de cinema –, Lívia Sampaio “tinha que se desligar de uma atividade para entrar em outra, o que tornou a produção do filme um pouco cansativa”, disse.
Sem o auxílio de editais, “Tranças” foi produzido por meio de crowdfunding e recursos da diretora. “Este tema dificilmente seria contemplado em editais e eu, como diretora estreante, preferi não esperar muito”, comentou. Por conta do orçamento apertado, em alguns casos, a produção teve que fazer malabarismo para cobrir todos os gastos.
“Deixei algumas falhas técnicas de lado que fariam o filme melhor porque não tinha verba para consertar, mas nada que comprometesse a narrativa. Gostaria de ter entrevistado mais pessoas, por exemplo, mas tive um tempo escasso para fazer essas entrevistas devido à questão financeira”, disse.
“Tranças” será exibido no Festival de Cinema dos Sertões, que ocorre no estado do Piaui entre os dias 26 e 30 de novembro. Para Lívia Sampaio, a participação no festival é uma forma positiva de ampliar a discussão e tornar a repercussão do projeto maior. “Creio que a recepção será boa. Como acredito na arte como força para proporcionar mudanças, estou segura de que o filme cumprirá um importante papel no combate à alienação parental”, comentou. Seus próximos passos são voltar a escrever o livro sobre alienação parental e investir no audiovisual.