Antes de sentar e escrever esse artigo, li o desabafo de alguém que luta contra a obesidade mórbida. Foi inevitável não pensar em como há pessoas que satirizam o termo e tentam banalizá-lo. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, estima-se que 54% dos cidadãos estejam acima do peso, e, uma em cada cinco pessoas esteja obesa. Esse é um número alto para um país que ainda não se desconstruiu sobre a obesidade e não se aceitou como gordo.

Não faz muito tempo, uma cena em “Malhação’, chamou atenção do público e da crítica: em um diálogo despretensioso, o namorado da protagonista perguntou a ela se poderia ficar “bem gorda” para que outros homens não tivessem interesse nela. O que poderia ser apenas uma conversa amistosa entre um casal serviu de alerta para mostrar duas situações recorrentes no cotidiano: a gordofobia e o machismo. Como se a pergunta não fosse preconceituosa o suficiente, a resposta da mocinha endossou o que se acredita ser normal na sociedade patriarcal ou, ao menos, o que os programas ficcionais vendem, “Gorda? Pra você me largar?”

Antes da série Insatiable entrar no catálogo da Netflix, houve um burburinho por conta do trailer, acusado de gordofobia, levando a uma petição para que a série fosse cancelada antes de estar disponível para o público. Apesar de Lauren Gussis, criadora da série, e Debbie Ryan, protagonista, pedirem ao público para que assistissem a produção e só se manifestassem após isso, não ajudou muito. Pelo contrário: comprovou que o trailer era só a ponta do iceberg de um produto carregado de preconceitos, gatilhos e um roteiro mal conduzido. Observando essas situações e outras, foi que uma antiga e escondida indagação sobre representatividade começou a tomar forma.

Na sociedade contemporânea, vários grupos minoritários lutam para ter voz e representatividade. Na arte, como um todo, isso não é diferente. E um ponto interessante é que a discussão em torno desse tema ganha cada vez mais adeptos e cenários, o que possibilita visibilidade e autoaceitação em alguns nichos sociais, demonstrando a importância e necessidade da identificação. As crianças afro-descendentes e as meninas que puderam ver-se nos heróis do cinema no último ano são um exemplo de como isso funciona.

Por que tanto burburinho em torno da representatividade?

A arte, por muitas vezes, ocupa a função memorial de um povo. Ela caminha lado a lado com a história, não à toa objetos históricos são catalogados como obras artísticas e vice-versa. Esse é o modo de expressão que os povos do antigo Oriente utilizaram para que muito da narrativa mundial pudesse tomar corpo. Assim, a Sétima Arte também assume seu papel no escopo artístico e recria a memória coletiva. Mais do que isso, ela cria padrões que ostentam o alicerce visual da sociedade.

A narrativa audiovisual consiste na arte de contar história e retratar, mesmo que inverossímil, as feições da sociedade a qual pertence. Neste processo, os padrões são construídos, abarcando desde o comportamento, até a beleza e a sociedade ideal. O impressionante é a influência que eles exercem sobre o público. Talvez este seja um dos motivos que produtos audiovisuais compostos por diversidades étnicas, cenográficas ou comportamentais atraiam consumidores enérgicos e fiéis – Sense8 e Glee são grandes exemplos recentes disso. É válido ressaltar que tal narrativa encontra espaço por oportunizar a expressão artística das minorias e, com isso, ter a oportunidade de mostrar histórias que não foram contadas, porque não se encaixavam no padrão estabelecido.

Influência do Audiovisual Para Crianças e Adolescentes

Em um contexto social em que a equidade tem sido pauta, o audiovisual é uma das janelas que possibilitam sua expansão. Daí a importância de representar a sociedade como ela realmente é com seus corpos e comportamentos. Afinal, o motivo pelo qual os padrões são impostos é a influência que a arte imagética exerce sobre nós, permitindo a incorporação de novos comportamentos e opiniões. Um dos grupos em que esse controle é mais amplamente sentido são as crianças e adolescentes.

Em processo de desenvolvimento intelectual e social, o consumo feito por esse grupo influencia em suas atitudes e modo de pensar. A inclusão do que se vê é mais natural nesse momento de construção, já que é quando a imitação é uma capacidade inata. Soma-se a isso o fato de as crianças e adolescentes ainda serem inexperientes para absorverem de maneira crítica o que lhes é transmitido e a habilidade de captar imperceptivelmente mensagens sutis.

Mas o domínio da formação da personalidade não é apenas da produção cultural a que os mais jovens são expostos, mas também do ambiente em que se encontram e as pessoas com quem convivem. Neste processo, a aproximação com indivíduos de faixa etária semelhante é tão perspicaz e forte quanto de seus familiares, por vezes até maior.

É por isso que o fator diversidade é fundamental nas produções voltadas ao público infanto-juvenil e adolescente.


Representatividade na Adolescência

Se representatividade está ligada a identidade e autoaceitação, nas fases iniciais são fatores cruciais para a formação do ser humano. E ao pensar nisso e voltando um pouco no tempo é que as reflexões escondidas acerca de representatividade não apenas assumiram forma, mas fizeram um barulho estrondoso para terem visibilidade.

A adolescência é uma fase de hormônios em ebulição com capacidade de explodir a cada toque. Ser adolescente é viver numa montanha russa e cada movimento dos trilhos influencia na adrenalina produzida. Ressaltando que as doses de adrenalina não são 100% boas nem completamente ruins. Porém são essas variações que resultarão nas aventuras que guardaremos para o resto da vida.

Desse modo, as coisas parecem mais simples se você tem um modelo a seguir. Por isso, a importância da representatividade nas produções voltadas para esse público. Passei pela adolescência durante o auge de “Glee”. Era uma das séries mais populares entre o público dessa faixa etária e, numa época em que WiFi não era tão popular, nem os serviços de streaming ou os smartphones, havia sempre trocas de pen drive com os episódios mais recentes. Só fui entender na faculdade o motivo dessa popularidade: representatividade.


Gordofobia

Talvez este seja o motivo que “Insatiable” e a colocação no diálogo de Malhação tenha mexido com o público. Vários países enfrentam a questão da obesidade e insistem em olhar para as pessoas acima do peso como se fossem ser humanos diferentes e não existisse espaço na sociedade para eles. Esse preconceito é mais real do que se imagina, uma pesquisa realizada pelo Ibope apontou que a gordofobia está presente na rotina de 92% dos brasileiros. Um número elevado e talvez você se indague como que essa situação está tão presente nas nossas vidas. Perceba:

– Vou me permitir essa “gordice”

– Mas você já pensou na sua saúde?

– Nossa, você vai comer mais?

– Ai, mana, eu to tão gorda

Soma-se a essas situações, o desmerecimento de alguém por ser gordo, a ergonomia das catracas em ônibus, os assentos. Todas essas situações e outras são momentos de gordofobia diários aos quais todos nós vivenciamos em algum momento. E para um adolescente e sua montanha russa de adrenalina, experimentar esse preconceito pode acarretar marcas para o resto da vida.

Pensando nisso em nossa volta no tempo, ponderamos sobre como as produções voltadas para o público adolescente tratam os personagens gordos, permitindo a reflexão de como isso incide na sociedade.

Como a produção audiovisual enxerga a adolescente gorda?

Geralmente, quando a pauta em torno da gordofobia no audiovisual vem à tona, “O Amor é Cego” e, mais recentemente, produções com Melissa McCarthy são citadas. Entretanto, é já aproveitando esses personagens que podemos encontrar o lugar comum que muitos utilizam para montar o personagem acima do peso. As jornadas de pessoas gordas são renunciadas e transformadas em piada de mau gosto no cinema e na TV. McCarthy, embora seja uma comediante, está constantemente sendo alívio cômico nos filmes que protagoniza. Em “O Amor é Cego”, as situações que envolvem Rosemary são surreais, além do body-shaming de Gwyneth Patrow, como se não fosse errado o suficiente, a atriz parece estar angustiada e deslocada quando gorda.

O personagem de “O Amor é Cego” e a atuação de Patrow apenas reafirmam um ponto de vista que não está só na área ficcional, mas toma espaço na vida real quando as pessoas insistem em pregar e acreditar que para alguém ser feliz e realizado, ele precisa não ser gordo. E a única saída para não ser anormal e inaceitável é emagrecendo. Esse é um estereótipo equivocado e que precisa ser combatido.

Na produção voltada para o público adolescente, os problemas podem variar, mas os deslizes envolvendo a representatividade continuam na mesma linha de pensamento.

A Melhor Amiga Esquisita e Esquecida

A personagem gorda nas produções adolescentes é regalada, geralmente, a melhor amiga, como é o caso de Mandella (Jolene Purdy), na série “10 Coisas que Eu Odeio em Você”, e Julia Steffans (Beanie Feldstein), de “Lady Bird”. Apresentando-as como personagens recorrentes, que aparecem um momento ou outro para dar um conselho óbvio e lembrar ao expectador que existem. Para esses personagens dificilmente há uma construção e um lugar na sociedade, a não ser para servirem de um falso lembrete que há representatividade gorda na produção.

Mandella ao menos apresenta um pouco de personalidade, tem um estilo próprio – e não totalmente excêntrico – e vive um romance sem depender de Kat. Entretanto, ambas não fogem do padrão da personagem gorda esquisita, que se veste mal, é sozinha – se não for a melhor amiga – e tem atitudes dúbias para com a personagem central.

Fat-Shaming

Outra representação notada é a autoaceitação depreciativa, quando a personagem passa uma noção de aceitar o seu corpo, mas não deixa de se depreciar, como Amy Gorda vem constantemente lembrar. A personagem de Rebel Wilson é uma das principais cantoras da trilogia “A Escolha Perfeita” e apresenta sempre arcos narrativos cômicos e que são distribuídos na trama junto com o drama de Beca (Anna Kendrick).

Apesar de pesquisas apontarem rejeição a pessoas gordas, e, de comumente os personagens acima do peso – quando não são alívio cômico – serem enfadonhos, esquecíveis e rejeitados, Amy Gorda é o oposto disso, sendo um dos personagens mais carismáticos e queridos do público, conquistando mais espaço nos últimos filmes da série. Não me espantaria se houvesse futuramente um spin-off da produção que focasse nela. Bem na vibe Sharpay em Nova York.

Amy mantém-se no padrão da melhor-amiga, entretanto é uma personagem mais desenvolvida e interessante. O terceiro filme da série consegue aproveitar sua história para basear-se a maior parte do roteiro, mas o fato de se chamar de Amy Gorda, não conseguir formular uma frase ou um momento que possa ser levado 100% a série, ter sua sexualidade sempre em voga e tratada de maneira cômica contribuem para o fat-shaming da personagem, mesmo que seja ela quem o inicie.

Comedora Compulsiva

Uma das mais recentes representatividades gordas nas produções adolescentes foi Patty Bladel de “Insatiable”. O primeiro erro da série é ter feito body shaming, em vez de usar uma atriz gorda. Seguindo essa escala de equívocos, há a gordofobia notável e a falta de cuidados com o estado psicológico de Patty. A personagem vive o drama do comer compulsivamente, que é uma doença ligada às questões do corpo como a bulimia e anorexia, mas geralmente esquecida e não quero citar que o motivo é seus pacientes estarem acima do peso.

O roteiro coloca a gordura de Patty como a responsável por seus problemas, quando na realidade o comer compulsoriamente, que a levou a estar acima do peso, é o resultado de toda insatisfação que sua personalidade devoradora teve ao longo da vida. Patty em uma construção má colocada do gordo, ou ex-gordo, come mal, feio, como se estivesse desesperada. Sua maneira de se alimentar é deformada e bem distante da realidade. Causando mais náuseas do que o estranhamento bem vindo do audiovisual.

Uma preocupação é a culpa da infelicidade e das ações egoístas da personagem recaírem constantemente sobre seu passado gordo, como se as pessoas realmente tivessem 100% de culpa de estarem acima do peso e a infeliz ideia de que o sonho de todo gordo é emagrecer e ter uma falsa vida dos sonhos. Quando a realidade é que nem todo gordo quer emagrecer e quando você emagrece continua com as mesmas características de antes, tanto as boas quanto as más.

Prejudicado pelo roteiro

Porém nem sempre a construção do personagem gordo é mal representativa, colocando-o como um ser à margem da sociedade e irreal. Às vezes é a escolha do roteirista para o fim do personagem é o fator prejudicial.

Dentre o elenco diversificado de Glee, havia uma personagem gorda, negra e feminista, afinal foi com “R-E-S-P-E-C-T” da icônica e saudosa Aretha Franklin que vimos Mercedes Jones ser introduzida ao “Novas Direções”.  Embora Murphy claramente apontasse seu preferencial por Lea Michele, algumas das músicas mais emocionantes do coro foram interpretadas por Amber Riley e uma das histórias de amor mais aguardadas e bruscamente interrompidas da série. O arco que envolvia Sam (Chord Overstreet) e Mercedes foi sendo construído aos poucos. Já no meio da segunda temporada, era possível ver uma troca de olhares, sorrisos cúmplices e um aperto de mão seguro e escondido, um prato cheio para as caprichetes do seriado.

Mas tudo isso foi jogado para debaixo do tapete quando Sam sumiu na primeira parte da temporada seguinte, e, Mercedes seguiu em frente. Depois Murphy presenteou os fãs do shippo Samcerdes com momentos ao som de Whitney Houston e Michael Jackson, mas que foi esquecido no episódio seguinte. A impressão que passava é que em um episódio isolado havia o casal e nos 10 seguintes aquele momento não existia. Era apenas uma ilusão. E o roteiro da série continuou fazendo isso até Cory Monteith falecer e sem par para sua protagonista, separar Sam e Mercedes, que já moravam juntos, para colocar Sam e Rachel.

Claro que o motivo para a separação do casal foi “convincente”. Mercedes é uma mulher gorda tangível com opiniões, vontades, desejos e sonhos. No único momento em que se sentiu incomodada em relação ao seu corpo, cantou “Beautiful” de Aguilera com um discurso impar de aceitação, em uma das cenas mais bonitas da série. Logo, sua escolha por sua carreira em troca do relacionamento, foi aceita pelo público, mas não deixa de ser um desserviço a personagem, que, com exceção de Sam, sempre se relacionou com caras que não elencavam o coral.

Na verdade, o desserviço ao casal foi constante, rememorando questionamentos recorrentes a solidão da mulher gorda15.

Gorda e Real

A maioria dos personagens de uma produção encaixa-se em algum padrão formulado na vida real, que por sua vez baseia-se em outro padrão imposto. E assim a recursividade de como um padrão é deliberando vai se formando. Nestas condições, como seria um personagem adolescente representativo? Sendo mais específica, como seria uma adolescente gorda representativa?

Se as emoções de uma adolescente estão constantemente em ebulição, discussões com os pais, questionamentos com o corpo, relacionamento com pessoas da mesma idade, crushes e outras peculiaridades são experiências pelas quais passa um adolescente, representá-lo nas produções audiovisuais é colocar em pauta alguns desses dilemas.  É por isso que Rae Earl é uma das personagens mais bem representativas não só para adolescentes gordas, mas para adolescentes de modo geral.

Rae, como a maioria dos adolescentes, tem problemas com a mãe e acredita que sabe de tudo, mesmo que suas soluções a coloquem em uma situação problemática atrás da outra. O roteiro é divertido e os personagens ao redor dela são bem construídos e permitem reflexões sobre julgamentos, atitudes e a vida, de modo geral.

“My Fat Diary” é focado na vida de Rae e suas percepções sobre o que a cerca. A personagem fala abertamente sobre seu peso, mas esse não é o dilema que dita a série. Pelo contrário, é apenas mais uma característica sua, em nenhum momento a série a coloca como alguém anormal por ser gorda e nem o desejo de emagrecer. Ela tem problemas com seu corpo como qualquer adolescente e não por ele ser gordo, mas pelas cicatrizes que ela se auto impôs em um momento de desespero e desesperança. E é ao som de “Fake Plastic Trees” que temos uma das maiores representações do desejo adolescente. Afinal, quem se sente realmente completo sempre?

Outro ponto interessante é que a série não prega a solidão da mulher gorda. Rae tem um parceiro que respeita seu tempo, seu espaço e seus anseios sexuais. E a forma como o relacionamento deles é posto é mais um tiro no coração das caprichetes e um ponto positivo para a produção. Ao assisti-la, dificilmente você ouvirá Oasis da mesma forma.

A série está totalmente disponível no YouTube e você pode conferi-la nesse link:

Há muitos mitos que as pessoas criam em torno de alguém que está acima do peso. Muitas dessas curiosidades alimentam o preconceito contra pessoas gordas e são criados até mesmo por gordos que não conseguem se aceitar. Afinal, a gordofobia é algo tão recorrente quanto o machismo e visto com maus olhos pelos voluntários não-inscritos nos vigilantes do peso, qualquer um pode assumir essa função, imperceptivelmente.

Por isso é tão importante as colocações que a produção audiovisual propõe a reflexão, mas se isso acontece de maneira equivocada, cabe a nós procurarmos bases melhores e quebrar o ciclo de preconceito. Se isso cabe a tantas desconstruções, a desconstrução em torno do gordo ainda é uma pauta válida e que precisa ser revista constantemente.