O pior aspecto do trabalho escravo versão século XXI – e sim, ele está muito presente – é o quanto ele é insidioso. Os personagens do filme 7 Prisioneiros, dirigido por Alexandre Moratto (“Sócrates”), produzido por Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”) e disponível na Netflix, descobrem isso rapidamente: após uma promessa de trabalho, esses jovens vindos da pobreza logo se veem num pesadelo antes mesmo que o filme chegue aos 20 minutos de duração.

Matheus, vivido por Christian Malheiros, é o protagonista. No início do filme, ele deixa a família e vai para São Paulo com um emprego garantido em uma empresa de metais. Chegando lá, o que vê junto com seus colegas é um ferro-velho, administrado por Luca (um assustador Rodrigo Santoro). Eles trabalham vários dias sem receber nada e logo descobrem que, de acordo com alguma contabilidade escusa, estão devendo muito dinheiro aos seus empregadores.

O tal Luca anda armado, eles não podem sair do lugar onde estão e sofrem violência e intimidação para continuar trabalhando. Nem pedir socorro é uma opção para eles. Na selva do capitalismo do ano 2021, os senhores de escravos chegam com sorrisos, promessas e um papo legal. E quando menos se percebe, as pessoas que vêm trabalhar apenas com esperança e a força do corpo se tornam vítimas.

ESCRAVIDÃO DA MENTE

Poderia ser apenas um filme de denúncia, um drama social contente em retratar um assunto muito sério e levantar uma discussão sobre ele – bem, 7 Prisioneiros não deixa de ser um filme assim. Porém, a intenção de Moratto, também autor do roteiro junto com Thayná Mantesso, é mais ampla. Sim, o filme apresenta e discute uma situação aterradora e muito presente na realidade brasileira atual. Mas ele também aborda os mecanismos mentais e emocionais pelos quais a escravidão funciona.

Na história, Matheus aos poucos estabelece um jogo psicológico com Luca, e depois até uma relação de confiança e de quase-amizade. Ele, de fato, acredita que vai conseguir pagar sua dívida e ficar livre. O filme acaba mostrando que, acima de tudo, a pior escravidão é a que ocorre na mente, na alma de uma pessoa. E essa também acontece de modo bastante insidioso…

O que faz essa noção funcionar dentro da narrativa é a atuação de Malheiros, sutil e muito boa. É difícil retratar um personagem inteligente, que pensa diante da câmera, e também é um desafio sustentar um estado de tensão por um filme inteiro. E conquistar a empatia do espectador é, claro, outro desafio. Malheiros consegue realizar as três coisas dentro da sua atuação: acreditamos quando Matheus se aproxima de Luca e quando ele tenta bolar planos para melhorar sua situação e a dos outros. Acreditamos na sua subserviência e na sua transformação numa pessoa pior. É um trabalho realmente inspirado, que se alimenta da atuação de Santoro. Afinal, este torna seu personagem medonho justamente pelo fato da sua maldade ser pequena, comum e direta.

REALIDADE TERRIVELMENTE BRASILEIRA

O diretor encena tudo com uma câmera tensa e nervosa, na mão por quase todo “7 Prisioneiros”. Sua encenação é tão naturalista que praticamente se sente o cheiro do ferro-velho. Os personagens estão quase sempre suados, trabalhando ou em estado de alerta. A tensão da história não se dissipa. 

Aos poucos, a narrativa amplia o foco para além do ferro-velho, expandindo o olhar para o horror da escravidão escondida entre as ruas e dentro dos galpões mal iluminados. O retrato de São Paulo serve como um microcosmo que possibilita o horror, nem tão disfarçado assim. Num momento, Luca mostra aos seus escravos como o cobre da sua operação acaba dentro dos fios que a Prefeitura instala e que mantém a cidade funcionando. Em algumas cenas, quem o ajuda a manter seus “trabalhadores” sob controle é a polícia. A implicação disso é terrível, claro. Terrivelmente brasileira.

A fotografia de João Gabriel de Queiroz ressalta esses aspectos: quase não há cor no filme – só o Matheus usa umas cores fortes no figurino em alguns momentos, para destacá-lo do grupo e retratar seu crescimento. De resto, é um filme de tons pastéis; com muita iluminação natural e com um tom opressivo.

Fica a sensação de que o longa poderia ter um desfecho mais poderoso, mas isso não tira o brilho de 7 Prisioneiros. É um filme tecnicamente esmerado, com roteiro redondo e conduzido por uma visão inteligente e certeira. Não deixa de ser curioso que, à medida que Luca, o antagonista, vai se tornando uma figura mais humanizada, Matheus, o protagonista, vai se despindo da sua humanidade, se tornando um prisioneiro ligeiramente diferenciado de uma terrível realidade, bem próxima de nós…