Em junho deste ano, o tabloide britânico Sunday Times publicou uma pesquisa em que cerca de 1000 pessoas foram ouvidas sobre trabalhos considerados, na visão delas, essenciais e não-essenciais. Na primeira categoria, como não poderia deixar de ser, apareceram os médicos (86%), faxineiras (78%) e lixeiros (77%). Refletindo a insanidade e desesperança de um mundo pandêmico, os artistas lideraram o ranking dos não essenciais na opinião de 71% dos entrevistados.
Exatos seis meses depois deste alarmante resultado, “A Festa de Formatura” chega ao Netflix como um resgate do que representa a arte nas nossas vidas, além, claro, de ser uma celebração à vida, à diversidade e a todas as formas de amor. Tudo isso com a cafonice e os exageros típicos de Ryan Murphy (“Glee” e “American Crime Story”) ao lado de um elenco liderado por estrelas do porte de Meryl Streep, James Corden e Nicole Kidman acompanhados da ótima revelação Jo Ellen Pellman.
Baseado em uma história ocorrida com a estudante Constance McMillen no Mississipi, no ano de 2010, e no musical homônimo da Broadway, “A Festa de Formatura” inicia com um grupo de atores em baixa na carreira encontrando uma forma de dar a volta por cima ao ajudar uma garota impedida de ir ao baile de formatura por ter a namorada como par, algo inaceitável para as conservadoras famílias da região – no caso, Indiana no filme, Estado natal de Murphy. A real intenção do grupo é conseguir visibilidade para o drama da menina na mídia e, assim, sair do ostracismo. Claro que, à medida em que vão se envolvendo na situação, os planos mudam, novos romances surgem, traumas do passado são revelados e uma mudança gradativa da sociedade local começa a acontecer.
CARNAVAL EM FORMATO MUSICAL
Ryan Murphy nunca foi um diretor ou produtor de sutilezas; pelo contrário, de “Glee” a “American Crime History”, todas as suas produções são escandalosas (eufemismo para cafona) no visual, personagens em um tom sempre acima e os roteiros e diálogos são ultra expositivos. Não há meio-termo: ou você compra a ideia e embarca nas idiossincrasias dele ou prepare-se para duas horas de irritação.
“A Festa de Formatura” segue esta receita com os paetês e glitters dos figurinos e uma direção de arte marcada pela paleta de cores mais forte dos últimos anos (nunca o amarelo foi tão amarelo assim como o roxo, azul, verde…) em um carnaval empolgante. Por outro lado, a defesa pela tolerância e os discursos de empoderamento chegam a se perder diante dos pobres diálogos e canções do nível dos filmes de Natal da Lifetime. Aliás, para uma produção vendida como progressista, chama a atenção o pudor em mostrar o romance lésbico interracial entre Emma (Pellman) e Alyssa (Ariana DeBose), sobrando um falatório interminável e um tímido beijo rápido.
Tradição dos musicais modernos, a montagem não deixa as sequências de dança fluírem com sucessivos cortes, tornando estes momentos grandes videoclipes. O excesso de personagens – James Corden parece perdido no meio de histórias mais interessantes – deixa barrigas incômodas, mas, nada comparado as irritantes propagandas escancaradas da AppleBees, MAC e Häagen-Dazs, algo constrangedor para uma produção deste porte.
‘We look to you’
Apesar deste flerte com o desastre, “A Festa de Formatura” supera qualquer adversidade pela crença na arte como um espaço de inspiração e sensibilização da humanidade. No momento mais emocionante do filme, o diretor do colégio Tom Hawkins (Keegan-Michael Key) fala sobre a sua paixão pelos musicais da Broadway, dos sacrifícios financeiros para conseguir ir às peças, das artimanhas feitas quando a grana acabava e de ser fã de Dee Dee Allen (Meryl Streep).
Em determinado momento da canção “We Look At You”, Hawkins afirma:
We look to you (Nós olhamos para você)
To take us away (Para nos levar embora)
From the soul-crushing jobs (Dos trabalhos de esmagar almas)
And emasculating pay (E castrar o pagamento)
When our lives come up short (Quando nossas vidas ficam curtas)
And our hopes are sad and few (E nossas esperanças são tristes e poucas)
You whisk us off to some place strange and new (Você nos leva para algum lugar estranho e novo)
We look to you (Nós olhamos para você)
In good times and bad (Em tempos bons e ruins)
The worlds you create (Os mundos que você cria)
Make the real ones seem less sad (Faça os reais parecerem menos tristes).
Se poderia ter tido um caráter de elogiar a si próprio como tantas obras hollywoodianas já fizeram ao longo da história ao falar da cultura pop e suas estrelas (e até chega a insinuar), a música assim como “A Festa de Formatura” como um todo ganham nova configuração diante deste horror de 2020. Durante a pandemia, foi na arte em que encontramos as breves alegrias nas lives de Teresa Cristina e Caetano Veloso, nos mistérios de “Dark”, nas emoções trazidas pelos festivais online, nos livros que pudemos ler, nas músicas que pudemos sentir.
E é nela, na arte, em que Emma encontra formas de se soltar das amarras e tristezas como ensina Angie Dickinson (Nicole Kidman, linda e carismática como nunca) na deliciosa “Zazz”. Da mesma forma, a jovem, encantadoramente interpretada por Pellman, inspira jovens LGBTQIA+, através da música nas plataformas online, a seguirem adiantes, resistindo às crueldades do mundo. A celebração final, colorida e alto astral, com aquela aglomeração que tantos sentimos falta coroa esse pequeno afago nestas angústias de todos nós em dias tão cruéis que já nos levaram 180 mil pessoas.
Que nos deixemos levar por essas duas horas.