Sempre que penso em “A Hora da Estrela” como produção cinematográfica, mentalizo a sensibilidade ímpar com a qual Suzana Amaral transpôs visualmente esse clássico da literatura brasileira. Não é em vão que o próprio filme tornou-se atemporal dentro da cinematografia nacional, retornando às salas de cinema com cópias restauradas digitalmente quase 30 anos após o seu lançamento. Amaral carrega um olhar carinhoso, mas que não deixa de ser real e cru sobre a sua protagonista. O resultado é um registro honesto — e devido a este motivo comovente — da jornada da ingênua e simplória Macabéa (Marcélia Cartaxo).

Acompanhamos os primeiros instantes da vida adulta da protagonista. Como a mesma enfatiza, é nortista, tem 19 anos e parece alheia à vida: se veste e come de qualquer forma e é ludibriada por qualquer conversa. Este cenário, contudo, aponta a fragilidade que Macabéa possui em todas as instâncias de sua vida: amorosa, profissional e social.

A TÔNICA DO NÃO-PERTENCIMENTO

Clarice Lispector descreveu certa vez sua Macabéa como alguém que carrega inocência e miséria. É interessante observar como essa definição é palpável na parceria entre Amaral e Cartaxo. Há uma ingenuidade que transborda no comportamento da protagonista e chega a ser incômoda, principalmente quando se reflete o quanto isso depõe sobre alguém que não sabe a qual lugar pertence. Em certo momento, ela afirma ao “pretenso” namorado que não entende o mundo porque não se entende. Ao colocar este pensamento junto aos inumeráveis pedidos de desculpa desnecessários que confere durante a exibição, o sentimento de não pertencimento da personagem se torna latente e reivindica a miséria sobre a qual sua vida se fundamenta.

A composição dos quadros de Edgar Moura (“Cabra Marcado para Morrer”) ao lado do direção de arte de Clovis Bueno (“Carandiru”) denota o quão inferiorizada a personagem é. E não apenas pelas pessoas ao seu redor, mas por si mesma. O espelho o qual projeta sua imagem, por exemplo, é enferrujado e sujo tal qual a distorção e a projeção que tem de si mesma e confirmando o que os outros personagens comentam sobre si pelas costas. Enquanto os detalhes e closes salientam a carência da aparência, os planos abertos da caminhada de Macabéa pela cidade mostram sua pequenez diante do mundo que a desconhece e o quão solitária e debilitada é a sua condição de existência.

CARTAXO SUBLIME

Ainda assim, a protagonista de Cartaxo é uma sonhadora. Olhar-se no espelho é uma forma de manter uma aspiração do futuro viva e de encontrar no próprio rosto algum traço que compartilhe com as outras mulheres que cercam a sua trajetória. Um exemplo disso é como busca um romance após Glória (Tâmara Taxman) comentar sobre como é ter um homem que a deseje. No entanto, por meio dos enquadramentos, do figurino e da relação entre os personagens, Amaral nos mostra o quão frágeis e interrompidos são os sonhos da personagem e a hostilidade com a qual o real a confronta; uma vez que os outros invalidam-na e tem um claro desinteresse por ela. 

Macabéa é visualmente uma figura antagônica a todas as mulheres que norteiam “A Hora da Estrela”. O figurino dela é uma mistura de infância tardia, antiquada e obsoleta, a qual se torna mais decadente conforme se salienta a falta de higiene da personagem. Nessa conjectura, Marcélia Cartaxo realiza um trabalho corpóreo sensacional e sutil, evocando toda a vulnerabilidade que a personagem carrega por meio de seus ombros rebaixados, o olhar retraído e a figura mirrada. A sensação que passa é de haver uma dor que atravessa o corpo de Macabéa constantemente, mas, assim como ela, não conseguimos denominar o que seria. É compreensível que Cartaxo tenha sido premiada com o Urso de Prata no Festival de Berlim como melhor atriz, em 1986, e conquistado prêmio correlato no Festival de Brasília, em 1985.

ACOLHIMENTO E REFLEXÃO

“A Hora da Estrela” perpassa ainda temáticas importantes para o universo feminino e que eram vistas de maneira mais delicada tanto quando Lispector escreveu a obra, quanto em 1985. Mesmo assim, a diretora mergulha de forma sensível em questões que atravessam o corpo da mulher, optando por uma abordagem pincelada e, em certa dosagem, ousada de tópicos como aborto, masturbação, desejo sexual, traição e o pânico de ser rejeitada pelo parceiro.

A restauração de “A Hora da Estrela” nos oportuniza contemplar na tela do cinema uma obra que mescla elementos técnicos e narrativos para nos aproximar de sua personagem central e, ainda que não nos identifiquemos com ela, suscitam sentimentos de acolhimento e reflexões sobre a nossa própria jornada. Afinal, este é o relato honesto e sensível sobre alguém que não encontrou seu lugar no mundo e apoia-se na ingenuidade e nos sonhos para manter-se viva. E quem é que não faz o mesmo?