A vida é feita de fases, algumas boas e outras ruins. Às vezes vivemos uma boa fase e tudo parece bem, então acontece uma coisa ruim e/ou estranha e tudo muda, mas a maioria das pessoas aceita isso e segue em frente. O Bebê de Rosemary de Roman Polanski é, acima de tudo, um lembrete de como as coisas podem mudar, de como uma grande escuridão pode se infiltrar numa vida tranquila e aparentemente perfeita. É um assunto do qual Polanski conhece muito bem: sua vida foi repleta dessas mudanças traumáticas. Na época em que se envolveu com o filme, no entanto, o diretor vivia um ótimo período criativo e pessoal.

Era o final da década de 1960 e o estúdio Paramount estava em crise. A situação estava tão ruim que deram a um ex-ator e modelo chamado Robert Evans o cargo de chefe de produção do estúdio. Mas Evans era um sujeito sagaz, e sob sua administração, a Paramount assumiu a dianteira, dentre todos os estúdios, durante o período da chamada Nova Hollywood. E tudo começou com O Bebê de Rosemary, projeto de adaptação do livro de Ira Levin que chegou ao estúdio pelas mãos do famoso produtor de filmes B de terror William Castle. O produtor era famoso por suas jogadas publicitárias para assustar o público, como esqueletos voando sobre a plateia e assentos que tremiam. Evans não queria nada disso para O Bebê. Reconhecendo o potencial da história e determinado a produzir algo mais especial do que apenas outro filme de terror, Evans chamou Polanski para dirigir o filme, no que seria o seu primeiro projeto nos Estados Unidos.

Polanski já era aclamado como um dos melhores diretores de cinema do mundo, com uma carreira de sucesso na Polônia e na Inglaterra, e também estava prestes a casar com uma das atrizes mais bonitas do mundo, Sharon Tate. Nada mal para alguém que na juventude fugiu do gueto de Cracóvia, perdeu a mãe nas mãos dos nazistas, viveu como menino de rua e passou fome e frio até ser reencontrado pelo pai após o fim da guerra. Essas experiências certamente o moldaram e deram a Polanski uma visão diferente da vida e da humanidade – visão esta que se mostrou ideal para O Bebê de Rosemary, com sua história repleta de paranoia na qual a vida tranquila da personagem-título de repente se transforma num pesadelo.

Rosemary Woodhouse (interpretada por Mia Farrow) e seu marido Guy (John Cassavetes) são um casal nova-iorquino jovem e normal. No começo do filme, eles se mudam para o edifício Bramford – na vida real, o edifício Dakota, em Nova York, emprestou a fachada para o prédio ficcional e anos mais tarde, John Lennon foi assassinado em frente. Um fato interessante de lembrar (ou conhecer). Enfim, logo Rosemary e Guy descobrem a estranha história do lugar: algumas mortes, moradores antigos cometendo bruxaria… E depois são apresentados aos dois vizinhos, o casal idoso Castevet. Roman (Sidney Blackmer) e Minnie (Ruth Gordon, numa atuação divertidíssima que lhe rendeu o Oscar de Atriz Coadjuvante) são solícitos e muito amigáveis. Não demora muito e Rosemary engravida e a carreira de ator de Guy deslancha. Mas antes de engravidar, ela tem um sonho estranho, no qual é estuprada por alguma coisa demoníaca com olhos estranhos e vermelhos…

É um filme de detalhes que acabam enriquecendo a história. O “Für Elise” de Beethoven tocando constantemente na casa dos Castevet só é substituído por um estranho cântico. Minnie e suas amigas parecem com as tiazinhas que todo mundo tem e conhece. A localização de uma cômoda, estabelecida no início, revela-se importante ao final. E os figurinos: a cor vermelha é usada pelos personagens em momentos-chave, e sempre com algum significado. A atenção aos detalhes e o cuidado com a história são tamanhos que sempre é possível descobrir coisas novas mesmo após várias assistidas.

Polanski filma tudo em longas tomadas que deixam a ação fluida, e com a mais absoluta calma. Sua técnica já é aqui a de um artesão experiente, com domínio absoluto do suspense e até dos momentos de comédia – e há momentos cômicos em O Bebê, nos quais o filme apresenta quase uma paródia da religião organizada, deixando o espectador nervoso e indeciso sobre se deve rir ou não. Essa calma não impede Polanski, ainda, de ousar em alguns momentos com uma câmera na mão nervosa, auxiliada pela sinistra trilha de Christopher Komeda, ou de criar três cenas de sonho que nos dão acesso ao subconsciente religioso e reprimido da protagonista. Talvez essa calma e esse cuidado narrativo sejam as principais razões pelas quais O Bebê é assistido ainda hoje, enquanto outros filmes mais “rápidos” e “espetaculosos” são esquecidos assim que o público deixa a sala do cinema.

E no centro de tudo, estão as atuações de John Cassavetes e Mia Farrow. A atuação dele é perfeitamente modulada, de novo comunicando todo o interior do seu personagem através dos detalhes – podemos até imaginar a história sobre o ponto de vista de Guy, e ela é outro filme de terror à parte. E ela nunca esteve melhor do que aqui: na atuação da sua vida, Mia faz com que nos importemos com a pequena e frágil Rosemary por todo o filme. É curioso perceber como ela é uma personagem passiva por quase toda a história, e então no terço final da trama, Polanski – também autor do roteiro – dá uma guinada e Rosemary se torna ativa. A atriz retrata essa transição de forma natural e ao mesmo tempo poderosa. No fim das contas, Mia é Rosemary, ao invés de interpretá-la.

Nesta obra repleta de subtextos, não se pode confiar em pessoas velhas – aliás, uma das imagens mais assustadoras e emblemáticas do filme é a do pesadelo de Rosemary, quando ela se vê nua na frente de muitos homens e mulheres idosos e também despidos – e os temores femininos da violação e de uma gravidez difícil são abordados através do viés paranoico da protagonista. Mas, no fim das contas, a história reflete a visão de mundo de Roman Polanski. Ele é Rosemary. Mais do que muitos cineastas, ele sabe o quão rápido a vida pode mudar para pior – e mudaria novamente para ele em breve com o terrível assassinato de Sharon Tate – e conhece as sensações de paranoia e perseguição que passam a dirigir Rosemary a partir de certo ponto da trama. Não à toa, esses sentimentos são frequentes na filmografia dele, e hoje O Bebê de Rosemary é considerado parte de uma “trilogia” informal de suspenses paranoicos, os “filmes de apartamento” de Polanski, na qual se incluem os também excepcionais Repulsa ao Sexo (1965) e O Inquilino (1976).

Polanski, no entanto, seguiu em frente, apesar das desgraças. Assim como Rosemary, e essa característica faz de O Bebê de Rosemary uma obra, curiosamente, otimista. Só alguém como ele para captar esse misto de otimismo e terror na cena final do filme, esse sentimento indefinível, ao mesmo tempo belo e terrível, de que é possível se acostumar com qualquer coisa. O fato de ser um trabalho absolutamente pessoal é mais um motivo pelo qual O Bebê de Rosemary permanece como um gigante não apenas dentro do gênero de horror, mas do cinema em geral.