Dona de uma voz marcante com uma carreira transitando pela rebeldia e ternura, Cássia Eller vivia o auge quando morreu no dia 29 de dezembro de 2001, aos 39 anos de idade. Como todos aqueles que morrem antes da hora e de forma inesperada, a gama de possibilidades do que a cantora poderia ter sido cria uma aura de encantamento e mistério. E em uma sociedade que busca respostas para tudo, esse mistério indecifrável cria uma imagem mítica e idealizada.

O documentário “Cássia” reforça essa imagem de idealização. Apesar de mostrar facetas diversas da mulher porra-louca que uma parte do público se acostumou a ver, o projeto de Paulo Henrique Fontenelle resvala na mitificação da cantora de “Malandragem” como uma pessoa maravilhosa, corajosa, adorada por todos, amorosa, genial, à frente de seu tempo. Frases de efeito ditas por entrevistados realçam esse aspecto a cada instante: “ninguém nasce Cássia Eller impunemente”, “Cássia era uma força da natureza”, “Cássia foi justa antes da Justiça”.

A idealização prejudica passagens importantes do filme como, por exemplo, o relacionamento de Cássia com o pai. Apesar de ser figura crucial na luta contra Maria Eugênia pela guarda de Chicão, pouco sabemos a relação dele com a filha e como isso moldou o comportamento da cantora. Outro aspecto pouco trabalhado está na causa da morte de Cássia Eller. Fontenelle não explica bem o quadro clínico da personagem e se contenta com a fala de um amigo dela se limitando a dizer que um infarto do miocárdio provocou o óbito.

Percebe-se a clara intenção de se preservar a memória da cantora, gerando um conflito entre o compromisso de informar o espectador e uma possível invasão à vida privada da personagem retratada. O caminho para encobrir esse conflito acaba sendo uma distração, no caso, a crítica à atuação da imprensa sensacionalista, especialmente, à Revista Veja.

Há de se ressaltar, porém, que o documentário nunca chega a ser cretino de esconder esse olhar idealizado sobre a personagem retratada. “Cássia” é um filme de fã feito para fã capaz de dialogar abertamente com o público em geral. Trata-se de um projeto explosivo como assim foi Cássia Eller. A riqueza do acervo de imagens obtido seja de vídeos caseiros ou de imagens de arquivo de programas de televisão aliadas aos depoimentos intimistas concedidos por figuras como Zélia Duncan, Nando Reis e Maria Eugênia mostram a paixão de Fontenelle e equipe na pesquisa para trazer à luz os diversos aspectos de Cássia Eller.

Longe de querer reforçar a rebeldia clichê associada à cantora, o documentário busca explorar as razões para aquele jeito louco nos palcos ao mostrar ser uma forma de extravasar as tensões e a timidez. E quem diria, para aqueles sem tanto conhecimento da carreira dela, Cássia Eller ser tímida. Sim, aquela mulher de cabelos loucos capaz de mostrar os seios para 90 mil pessoas no Rock in Rio e soltar aquele vozeirão era, na verdade, introvertida, amorosa e dona de uma feminilidade única. Nesses momentos, “Cássia” cresce e revela sua verdadeira importância: ser a declaração de amor definitiva para Cássia Eller.

E como o amor, só existe se for idealizado.