“Eu vou te curar…. 
De quê? 
De tudo que te machuca.”

Curandeira. Santa. Imaculada. Infantilizada. Fervorosamente pronta para começar a experienciar as dores e delícias do mundo, “Clara Sola é uma cachoeira pronta para romper as barragens que a limitam, que a impedem de correr para onde quiser e inundar.  Um filme que desperta sentimentos e sensações de uma forma caudalosa, “Clara Sola” trata de tantas coisas em pouco menos de duas horas de experiência cinematográfica que é de se considerar um artefato, uma obra difícil de tirar da memória do olhar.  A cineasta costarriquenha sueca Nathalie Álvarez Mesén assombrou seu país natal ao arrebatar com esse filme dois prêmios do prestigioso Guldbagge Award – de melhor direção e melhor roteiro; e ainda o prêmio do Júri na Mostra Internacional de São Paulo, em 2021.

Mulher-entidade, Clara (vivida de uma forma quase que mediúnica e de-fora-desse-mundo pela incrível Wendy Chinchilla Araya) tem um nome secreto, sussurrado, que a traduz no mundo das delicadezas imperceptíveis a olho nu: Sola. Sozinha, solitária em um mundo muito tacanho e limitado, onde os arroubos de tradição cristã aprisionam corpos – em especial, de mulheres – enquanto afugentam pecados da carne, essa criatura vai chorar, vai sofrer, se metamorfosear e queimar para renascer, mas, não sem antes deixar uma marca permanente no vilarejo remoto onde vive e é tida como uma santa milagrosa. 

Quase com 40 anos, Clara vive com a mãe carola e a irmã, mais jovem e no auge da puberdade, e com a belíssima égua branca Yuca – e qualquer simbolismo aqui com o imaculado branco do animal ou a mitologia do unicórnio e o despertar sexual não é mera coincidência. Afinal, nesse filme de estreia, Álvarez Mesén joga com a fábula da menina em busca do conto de fadas, das sensações como a “borboleta no estômago”, “o vestido perfeito”, “o primeiro beijo” e tudo que decorre de experiências prazerosas ainda que proibidas para a personagem-título.  

‘PODER’ ESPLENDOROSO 

O simbolismo contundente e até de uma crueza, ainda que bonita, tecem a trama de ruptura da opressão sistemática e silenciosa em torno de Clara Sola. Com auxílio, ainda que não solicitado, do jovem namorado da irmã, ela vai lambendo os dedos besuntados de pimenta chili pela mãe, não aceitando não poder desvendar seus pontos de prazer ou manter sua égua mágica para si. A torrente de sentimentos reprimidos vai eclodindo a cada nova situação em que Clara é retirada de sua zona de conforto. Seja quando tem que receber devotos, ceder espaço para a irmã celebrar seus 15 anos, aceitar a imposição fanática da mãe, que a trata como uma incapaz, Clara vai revelando um ‘poder’ cada vez mais esplendoroso.  

Curando o que a cerca, como o inseto que morre e ressuscita com calor do sopro da vida, a corcunda que, como num passe de mágica, dentro da água, se esvai, Clara Sola se metamorfoseia naquilo que sempre quis ser, seja no mundo terreno ou no além – em algum lugar onde seria possível viver sem estribeiras. Um conto sobre o sagrado feminino, sem as bobagens feministas liberais, sobre a condição da mulher numa sociedade arcaica, tão frequente ainda hoje, “Clara Sola” é uma obra que reverbera e inspira, sobre o que é, afinal, auto empoderar-se.