Em “Divino Amor”, Gabriel Mascaro realiza uma obra que servirá como exemplar do que foi o Brasil nessas décadas iniciais do século XXI. Um país complicado que, do berço de uma ideia progressista, terminou no mais profundo conservadorismo, flertando agora com as visões mais exageradas possíveis para o seu futuro. Ambientado em 2027, o realizador pernambucano brinca com a possibilidade de imaginar um Brasil reacionário dominado por um governo republicano-protestante para discutir a situação atual do país.

Ainda que bem pensado, “Divino Amor”, não alcança um nível de discurso que consiga dosar bem o alegórico com a narrativa, deixando o longa de 101 minutos bastante arrastado em alguns momentos.

O filme inicia com a imagem de uma rave e dois corpos se destacam da multidão dançando fervorosamente. Com coreografias mesclando o que se espera de alguém em uma festa eletrônica ao mesmo tempo que louva um ser divino em sua igreja aos finais de semana, o espectador conhece os personagens Joana (Dira Paes) e Danilo (Julio Machado). Os dois já tem mais de 10 anos casado e parecem ser bastante felizes juntos. O único problema é a falta de um filho, que não chega devido a infertilidade do marido. Mesmo abalados com essa notícia, eles não desistem de tentar conseguir uma criança.

Isso termina influenciando a rotina de Joana. Com um ótimo texto e uma excelente atuação de Dira Paes, a protagonista trabalha em um setor de um cartório cujo foco é receber pedidos de divórcio. Joana vê nisso como uma possibilidade de poder “ajudar” esses casais a não se separarem e conseguirem reaver a chama de sua paixão através do programa ‘Divino Amor’.

O Divino Amor é uma mescla de seita criada dentro de uma igreja protestante onde o lema principal é “quem ama não trai, quem ama divide”. Em sessões de leituras de trechos da Bíblia e troca de casais em um quarto para o sexo, esse local reconecta esses casais através do amor da carne, mas sempre pautado por uma mensagem religiosa.

CAMINHOS DO OBSCURANTISMO

Nada é gratuito no filme. É bem provável que surjam comentários visando um olhar de preconceito e blasfêmia por parte de Mascaro, porém, “Divino Amor” consegue extrair o mais próximo de uma tragédia de costumes ambientado em um possível futuro do Brasil: onde religião e governo se misturam, e palavras vazias bastam para oferecer conforto para quem está em agonia. É uma visão do atual obscurantismo que atravessa o país, visível em slogans oficiais da nação e uma necessidade de incluir a questão religiosa de uma crença específica em um país marcado por seu caráter multicultural.

Isso é evidente no “pastor de estrada” (Emílio de Mello) que oferece conselhos religiosos em um espaço semelhante a um drive-thru de fast food. Existem outros momentos onde os personagens estão dançando na já mencionada “balada gospel”, onde todos vão ao delírio após uma barra no telão ficar cheia e indicar as palavras “100% Jesus”. Enfim, Mascaro e sua equipe de roteiristas criam as estruturas para que o espectador não se assuste e ache que o que verá será muito forçado.

Joana consegue de destacar como personagem principal devido sua complexidade. Sendo uma burocrata e exercendo uma posição de poder, ela não mede esforços para usar sua influência para poder evitar os inúmeros divórcios que chegam em sua mesa. Ela faz isso não porque pode, mesmo tendo esse poder, mas sim pelo motivo de acreditar que esta é sua “cruzada”, sua missão na terra. Escutando toda noite o pastor no drive-thru dizendo que deus fala através do silêncio, ela vê nisso uma razão para que sirva ao seu senhor evitando os finais de matrimônios e assim possa receber mais na frente a graça de poder ficar grávida.

Tudo isso pode ser notado através das falas de Joana. Ela não menciona os casais que ajudou, mas já dá o valor exato de casamentos que “salvou”. “Eu já salvei 11 casais”, ela diz orgulhosa, mas esperando algo a mais em um momento. Isso denota não um altruísmo de sua parte, mas uma relação de troca com seu criador. A forma como Dira Paes compõe sua personagem também é ótimo, pois, ressalta esse lado de ingenuidade com uma certa esperteza de sua parte.

 RITMO IRREGULAR ATRAPALHA

Além disso tudo, “Divino Amor” se destaca pelo seu belo trabalho visual. Com fotografia de Diego Garcia, o filme se beneficia de seus lentos movimentos de câmera e a economia de cortes, buscando realizar uma ação somente dentro de um plano. A paleta de cores vai do vermelho ao azul, sempre com uma áurea de néon para sempre lembrar ao espectador que a ação se passa em um futuro próximo. Esse uso de cores acaba recaindo nas roupas do casal, onde Paes utiliza bastante o vermelho e Julio Machado o azul. E quando existe a necessidade de ressaltar um momento de dúvida ou angústia de Joana, ela usa alguma roupa preta, destacando-a do ambiente onde está, enquanto seu marido continua “harmônico” dentro da cena.

Outro destaque vai para a equipe de efeitos visuais que projetou boa parte da cidade aos fundos e os prédios que estão em destaque em planos mais próximos. O resultado é excelente, pois, é difícil perceber o emprego de computação na criação do ambiente da cidade e de seus prédios. Além disso, a arquitetura desses locais beira a algo grandioso, mas ao mesmo tempo estéril, onde os personagens normalmente são diminutos frente a esse mundo totalmente regido por costumes que nem deveriam estar presentes na esfera do governo.

Ao final, “Divino Amor” peca somente no emprego de suas alegorias. Mesmo que bem pensadas, elas não conseguem se conectar bem com o resto do filme. Tornando-se muitas vezes desnecessárias e uma forma de querer cutucar um universo apenas porque pode, sem que isso faça a história andar. O maior reflexo disso é a narração que acompanha o filme. Com a voz de uma menina contando a história, ela não deixa de dar suas próprias opiniões, em alguns momentos até políticas, em momentos que seriam melhores beneficiados pela apreciação das cenas. Logo no início, por exemplo, isso acontece na dança do casal principal, que provavelmente teria um efeito melhor caso estivesse presente somente a trilha sonora.

Ao final, “Divino Amor” encanta por sua mensagem, porém, fica o gosto de que poderia ter ido além. Talvez ter explorado melhor os acontecimentos que ocorrem com Joana ou ter construído uma melhor relação dela com seu marido no roteiro poderiam ter ajudado o longa a render mais. E talvez até ir além na relação entre a tensão de uma visão de país protestante e como ela poderia causar conflitos com outras visões religiosas nesse futuro pensado.

É visível a necessidade de Mascaro em querer dar sua visão sobre o momento atual do país. Só poderia ter mergulhado mais na narrativa e, talvez assim, “Divino Amor” poderia ficar melhor marcado na história. Mas uma coisa é certa: a cena final do filme é com certeza um dos momentos de maior afronte do cinema nacional desse ano, e até agora a melhor ironia já registrada em 2019.