Parece mentira, mas, os EUA registraram 131 tiroteios com 195 mortos e 503 feridos somente nos primeiros três meses de 2023. Segundo dados da organização Gun Violence Archive, os números são os maiores dos últimos anos. A violência brutal e generalizada se tornou cotidiano para os norte-americanos em meio ao lobby pesado para evitar um maior aperto para a aquisição de armas e munições no país. Divulgado com uma cara de suspense típico do Supercine no melhor estilo de caçada ao criminoso, “Sede Assassina” se mostra muito maior ao debater o quanto este ambiente próximo a uma guerra civil adoece a população até fins trágicos. 

Retornando aos cinemas após quase 10 anos do excelente “Relatos Selvagens”, o argentino Damián Szifron mostra que não perdeu a mão logo na impressionante sequência inicial: em plena noite de ano novo, Nova York vive clima de celebração com amigos e famílias reunidos em festas com o céu iluminado por fogos de artifícios. De repente, execuções começam a ser feitas aleatoriamente com tiros saindo sabe Deus de onde. Pessoas mortas em jacuzzis, no chão da sala de casa ou até subindo no elevador se espalham pela cidade. Através de equipamentos de última tecnologia, a polícia logo descobre a localização de onde ocorreram os disparos com lasers verdes riscando a noite da Big Apple em direção ao apartamento, antes de tudo ir pelos ares em uma explosão planejada pelo criminoso. 

Com um início eletrizante destes, seria natural Szifron partir para um thriller em busca do responsável pelas mortes de 29 pessoas de maneira tão brutal. “Sede Assassina” paga sim o pedágio tradicional deste tipo de filme como o investigador-chefe do FBI Geoffrey Lammark (o excelente e subestimado Ben Mendelsohn) explicando o perfil do assassino no meio da delegacia para os demais policiais, as etapas da investigação com um falatório interminável sobre detalhes do caso e o clássico jogo de gato e rato na reta final. Os reais trunfos do filme, porém, estão em uma dimensão bem maior… 

TRATADO SOBRE OS EUA 

Com roteiro do próprio Szifron em parceria com o britânico Jonathan Wakeham, a obra acaba sendo uma observação sobre o impacto da violência e da cultura das armas nos EUA. Em certo momento do filme, Lammark chega a afirmar que o assassino passa longe do perfil do maluco psicopata tão associado a crimes violentos; na verdade, a grande característica do criminoso para conseguir matar com tal facilidade seria de alguém tão habituado às armas que elas se tornaram uma extensão do corpo dele. 

Logo, a naturalização da violência e as consequências de uma sociedade completamente doente tornam-se o verdadeiro focado de “Sede Assassina”. O resultado mais natural deste processo são os assassinatos em massa, capazes de atingir qualquer um a qualquer hora. Para além da sequência inicial, Szifron ainda traduz à perfeição esta atmosfera de terror aleatório com toda a ação no shopping ao optar por planos abertos em que parece que o caos acontecerá a qualquer momento e sem nunca destacar exatamente o início da violência, mas, sim seus trágicos resultados. 

Por vezes, “Sede Assassina” amplia demais o escopo ao querer abordar da poluição ao racismo sem se aprofundar demasiadamente. Por outro lado, são mais assertivas as críticas sobre a politização dos casos, as doenças psicológicas que afetam todos no lindo momento em que são citados diversos problemas com a câmera transitando pelos rostos dos policiais e o desserviço prestado pela imprensa sensacionalista no melhor estilo “o show precisa continuar”, como até chega a afirmar um assessor governamental ao pressionado delegado Lammark que não consegue encontrar o assassino. 

OS RECONHECIMENTOS DOS DESAJUSTADOS 

Todo este cenário caótico se personifica na policial Eleanor: desde o primeiro contato com ela, a expressão denuncia alguém prestes a desabar. Quem dera se a razão principal fosse apenas o cansaço de um dia exaustivo ou a falta de sono; sem amigos, vivendo sozinha em uma casa com zero traço de personalidade e escanteada no próprio trabalho, ela parece fugir do mundo como uma forma de proteção de alguém cansada de levar porrada. 

Curioso como “Sede Assassina” observa que, nesta sociedade violenta e sensacionalista, os desajustados acabam por se reconhecer, seja com Lammark notando o potencial escondido em Eleanor através do reconhecimento em pequenos gestos (a olhadinha ao vê-la novamente anotando é impagável), seja nela entendendo o desespero das razões do assassino, ainda que, claro, não concorde com os massacres. Shailene Woodley, atriz também subestimada igual Mendelsohn, apresenta uma das grandes atuações da carreira ao viver uma personagem difícil com um sofrimento nem sempre externalizado. 

“Sede Assassina”, ainda que corresponda a expectativa do thriller clássico de caçada ao assassino, se revela uma grata surpresa ao apontar a mira para um retrato perturbador de um país refém das armas de fogo e de uma violência incontrolável. Um retrato que, muitas vezes, somente sendo observado de fora para dentro pode ser feito.