Que curiosa carreira tem George Miller: o australiano era médico, depois migrou para o cinema fazendo curtas na incipiente indústria de cinema do país e há 45 anos lançou Mad Max (1979), um filme de ação e vingança de baixo orçamento marcando a estreia em longas. A produção virou um sucesso mundial, catapultou para a fama um rapaz chamado Mel Gibson e com o tempo definiu toda uma estética e um subgênero do cinema, o filme de ação pós-apocalíptico, que inspirou centenas de outros filmes e obras em diferentes mídias nas décadas seguintes.

Depois Miller virou um estudioso de mitologia. Praticamente todos os filmes seguintes – e nem foram tantos assim em 45 anos de carreira – mostraram personagens em jornadas, heróis envolvidos em buscas para melhorar seus mundos ou, ao menos, suas vidas, e de quebra influenciando outras pessoas. Esses temas, de uma forma ou outra, aparecem de O Óleo de Lorenzo (1992) a Babe: Um Porquinho Atrapalhado (1995), Happy Feet: O Pinguim (2006) até Era Uma Vez Um Gênio (2022). Às vezes, ele até buscou inspiração em religiões e mitos antigos para compor suas histórias.

Essa tendência mitológica começou com a obra-prima Mad Max 2: A Caçada Continua (1981), primeiro retorno ao universo pós-apocalíptico que criou um dos filmes mais cinéticos de todos os tempos e que transformava o policial vingativo do primeiro em um herói vagando pela terra devastada, a seu modo se tornando um mito. E em anos recentes, quando ressuscitou a saga em Mad Max: Estrada da Fúria (2015), Miller manteve essa característica, agora adicionando uma outra figura mitológica, a heroína Furiosa – o filme tinha Max no título, mas a protagonista era de fato a personagem vivida por Charlize Theron. De quebra, Miller fez ali aquele que, na opinião deste que vos fala, é o melhor filme de ação da história do cinema.

Agora, em Furiosa: Uma Saga Mad Max, Miller quer construir o mito de Furiosa desde os seus alicerces. O filme é uma prequel, ou seja, se passa antes de Estrada da Fúria, o que por si já traz um conjunto de desafios ao cineasta e sua equipe e atores. Mas Miller se mostra ambicioso: vemos a pequena Furiosa (Alyla Browne) sendo roubada do lar, um oásis de vida ainda intocado pelo deserto. Ela acaba indo parar sob o jugo de Dementus (Chris Hemsworth), um bandido da terra devastada que, aos poucos, vai crescendo em importância. Depois, o caminho dela cruza com Immortan Joe (Lachy Hulme), outro tirano do deserto, que comanda a Cidadela. Ela cresce, mas a Furiosa já adulta (Anya Taylor-Joy) nunca esquece do desejo de vingança contra Dementus.

EXPANDINDO O UNIVERSO

A maior qualidade de Furiosa é a oportunidade de explorar um pouco mais o deserto e os vários cenários e ecossistemas que se formaram após o fim do mundo: além da Cidadela, vemos o Vale Verde, a Vila Gasolina e a Fazenda da Bala, que eram apenas mencionados em Estrada da Fúria. Esses ambientes, cada qual com seu funcionamento e visual, aumentam o escopo do sempre fascinante universo concebido por Miller e pelo desenhista de produção Colin Gibson.

E claro também não se pode deixar de mencionar os veículos, impressionantes como sempre: da carruagem de três motos de Dementus até a primeira versão da Máquina de Guerra, os carros e caminhões – e até alguns veículos aéreos – se tornam personagens que ajudam a contar a história.

Em meio a esses cenários acompanhamos uma história épica, conduzida por um narrador e dividida em capítulos, para acentuar o caráter de lenda a respeito do que vemos. E os dois elementos fundamentais na história são os desempenhos de Taylor-Joy e Hemsworth, que realmente não deixam a desejar – ela abraça a responsabilidade de suceder Charlize Theron com coragem e entrega, atuando com os olhos e seu rosto expressivo, porque Furiosa fala bem pouco no filme; já ele cria um personagem a principio bonachão e com uma fachada inicial até simpática, mas cuja crueldade aparece em momentos chave do filme, e o ator administra bem essas transições.

 UM PATAMAR ABAIXO

Porém, Furiosa tem dois problemas incontornáveis que o impedem de superar Estrada da Fúria. Primeiro, a estética é, em geral, muito decorrente do longa de 2015 – até os créditos de abertura com narração são idênticos. Isso faz com que Furiosa não tenha muito de um “fator uau”: há grandes momentos, mas não se sente o assombro que algumas imagens e elementos do outro filme provocaram.

Paradoxalmente, a ambição do diretor também acaba sendo um problema: ninguém deve culpar Miller por ser ambicioso, mas às vezes essa ambição e grandiosidade fazem com que o realizador recorra a muita computação gráfica e nos filmes Mad Max a crueza sempre funcionou melhor, a visão de batidas de carro e ação real faz parte da experiência. Estrada da Fúria também tinha lá suas trucagens digitais, mas, na maioria das vezes, elas serviam para aumentar o que já tinha sido filmado em frente às câmeras. Por mais impressionantes e incríveis que sejam alguns momentos de Furiosa, há outros tantos que são feitos de modo digital, e isso diminui o senso de espetáculo.

Mesmo assim, esses problemas não prejudicam muito o filme, que permanece mais uma incrível visita a um universo muito peculiar e pessoal, e que fascina o público e outros cineastas há muitas décadas. George Miller, pelo menos, é honesto: Furiosa, na verdade, parece ter sido feito como um complemento a Mad Max: Estrada da Fúria. Funciona por si mesmo, mas também paga tributo ao marcante filme anterior, até incluindo algumas das suas cenas lendárias nos seus créditos finais.

O que importa para ele é fixar, na mente do espectador, outro mito, outra heroína que saiu em busca de vingança, sem nunca conseguir voltar para casa – e o clímax deste longa até evoca lembranças dos últimos minutos do Mad Max original, fazendo a saga fechar um círculo completo. Mas no processo, a jornada se torna outra lenda, não só do deserto pós-apocalíptico, mas do cinema.