A primeira vez que encontramos Renfield (Nicholas Hoult) é em um grupo de apoio para codependentes anônimos. A reunião é tipicamente hollywoodiana – nenhum grupo de apoio é como nos filmes, com pessoas falando umas sobre as outras e sendo capitaneadas por um aspirante a coach -, mas o sentimento parece verdadeiro. Isto é: parece haver certo peso, mesmo, na descrição da toxicidade da situação – no drama de Renfield.

É que, veja bem, o rapaz trabalha para ninguém mais, ninguém menos que o Conde Drácula (Nicolas Cage) em pele, osso, sangue e carne morta. Apesar do cenário fantástico, quando o pobre servo descreve as armadilhas de sua relação tóxica, o filme soa honesto, cuidadoso.

“Cuidadoso” – há muito aqui que indica certo cuidado do diretor Chris McKay e companhia; mas, curiosamente, há indícios do contrário por toda parte. Melhor dizendo: se, por um lado, a equipe (e o elenco) parecem investidos e interessados na história que contam, “Renfield – Dando Sangue Pelo Chefe” exala, por outro, uma perene fragrância de “notas do estúdio” – a sensação de que algum executivo andou bagunçando o meio-de-campo.

É o que explica, por exemplo, a péssima e redundante narração em off de Renfield, que serve para (quando tanto) passar por cima, preguiçosamente, de acontecimentos que demandariam certo tempo de tela. Na mesma toada, o filme todo parece ter sido picotado, abreviado. Claro, é sempre bom ver uma comédia que sabe não precisar se estender para além dos 90 minutos, mas seria bom acompanhar um desenvolvimento mais cuidadoso de certos elementos. Há cenas que parecem emendadas umas nas outras da forma mais troncha possível (note, nesse sentido, a transição para o momento em que a policial de Awkwafina decide retornar a uma cena de crime).

NICOLAS CAGE ‘CONTIDO’

Momentos como esse contrastam com o tal cuidado mencionado acima – que é muito bem exemplificado pelo trabalho de decoração e design dos espaços. Cada masmorra tem uma identidade distinta e bem definida, desde a dungeon da máfia italiana, com seu arsenal de armas de tortura, às ruínas do Drácula, com um trono ornado por bolsas de sangue. Outro exemplo: os pôsteres motivacionais no apartamento colorido de Renfield, o tipo de detalhe que ajuda a construir um espaço silenciosamente (e de forma bem humorada, no caso). Da mesma forma, eu me peguei demorando o olhar sobre o caixão de ferro onde Drácula é transportado, com alças de couro acopladas para seu devido manuseio – talvez até seja o mesmo couro cujos vincos notamos na capa usada pelo vampiro.

Não, não parece ser o caso de um filme feito de qualquer maneira – o que me faz pensar que há uma versão mais completa do longa perdida em algum HD da Universal Pictures. Não que o filme seja ruim do jeito que é: mesmo com seus arroubos pop genéricos nos momentos mais sanguinolentos, Renfield é uma adição divertida e bem-vinda ao IMDB do vampiro mais famoso do cinema. Boa parte disso se deve, é claro, ao seu elenco mais que inspirado.

Hoult pode interpretar esse tipo de personagem vulnerável sem nem pestanejar. Awkwafina, por sua vez, sabe mexer seu corpo raivosamente como poucos, extraindo cada gota de comédia da sua performance física. E então você tem Nicolas Cage, o ator mais expressivo da sua geração, em um papel feito sob medida. E ele deixa a desejar? Não – mas, deixa a impressão de que o ator está até contido demais.

Veja bem: sim, cada uma de suas inflexões é absolutamente hilária, preciosa e precisa. Essa precisão, aliás, parece ter saído diretamente da boca do primeiro Drácula oficial, Bela Lugosi. A cadência pausada do astro húngaro era capaz de fazer uma única frase conter uma infinidade de entonações – algo que o ator explorou a fundo ao longo dos anos 30, e que parece servir de inspiração para Cage não é de hoje. Aqui, essa riqueza expressiva está presente, claro, mas, dada a envergadura e o ecletismo de Cage, a gente fica até esperando que ele se solte um pouco mais.

Mas um Nicolas Cage “contido” ainda vale mais que mil performances oscarizadas, e os prazeres de Renfield não dependem apenas do sangue do astro veterano, felizmente.