Não é pequeno o feito de Guel Arraes em “Grande Sertão”. Ele tomou como matéria-prima um dos maiores feitos artísticos da história da humanidade, a obra-prima de Guimarães Rosa, e realizou um filme que vai do irritante ao lugar-comum numa velocidade impressionante. 

O sertão que Arraes concebe é, na verdade, uma grande favela murada, o Complexo do Sertão. Estamos numa distopia. Presume-se que estejamos em algum ponto do futuro, mas “Grande Sertão” se esquiva de precisar qualquer coisa: o design da favela à la “Jogador Número 1” encontra o visual motoqueiro pós-apocalíptico de um Mad Max da vida, enquanto os personagens se utilizam basicamente da tecnologia atual. Essa concepção confusa deixa clara a estratégia de Arraes: optar pela generalização e pela não-especificidade como muleta para a adaptação. 

Os motivos para isso são claros: o romance de Rosa, de aspirações metafísicas, encontra na travessia sertaneja a grande empreitada da espécie humana, transitando entre o bem e o mal, Deus e o diabo. Ou seja: é algo complexo, grandioso, que fala por e para toda a humanidade. Mas a força de “Grande Sertão Veredas” reside justamente no fato de que, para chegar ao universal, ele se utiliza de uma rica e precisa evocação de espaços, paisagens, cheiros… Até mesmo a linguagem de Rosa se faz universal não por ser genérica, mas pelo modo como articula os diferentes dialetos e idiomas dominados pelo romancista de forma extremamente específica, precisa. Daí, inclusive, a dificuldade que se tem no primeiro contato com sua prosa.

Já vimos então que é necessária uma visão certeira das coisas para atravessar esse sertão. Arraes é, no máximo, um bom agregador pop, de modo que não é de se espantar que ele se perca no caminho. 

INDECISÃO E REVERÊNCIA

O resultado é uma bagunça. Afinal de contas, onde estamos? O Complexo do Sertão é uma espécie de ruína da nação ou se trata de uma região específica do país? Por um lado, o filme apela para o universo carioquês dos favela movies, com sotaque carregado e tudo o mais; por outro, se utiliza das caracterizações agrestes não-especificadas que já pipocaram em outras empreitadas de Arraes. 

A indecisão parece surgir por uma certa reverência ao material original, o que é compreensível, naturalmente. Mas ela aparece não só aí como em todos os aspectos de “Grande Sertão”. O longa, por exemplo, mantém o solilóquio de Riobaldo (Caio Blat) como fio condutor da trama, assim como no livro. Ao mesmo tempo, ciente da recente adaptação teatral de Bia Lessa, também estrelada por Blat, Arraes mira por vezes num tom francamente teatral que, no entanto, não segue até o fim. No meio do caminho, cria a caricatura do temível Hermógenes, interpretado por Eduardo Sterblitch como uma versão cover do Gollum de “O Senhor dos Anéis“. E mesmo não se tratando de uma adaptação teatral, tampouco de uma peça filmada, Arraes insiste em fazer seus atores declamarem suas falas estilizadas aos berros, o que se mostra cansativo e irritante logo de cara. 

Isso tudo com o tempero, como já disse, de um favela movie carioca. Aqui, o confronto é entre polícia e bandido, personificados, respectivamente, pelo Comandante Zé Bebelo (Luís Miranda) e Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi). São líderes justos (apesar da caracterização que Arraes impõe ao Bebelo de Luís Miranda partir do imaginário fascista, o que soa esquisito), ao contrário do salafrário Hermógenes, braço direito de Ramiro. Fechando a gangue de Joca estão o misterioso Diadorim (Luísa Arraes, filha do diretor e veterana da adaptação teatral) e um punhado de outros criminosos pós-industriais não especificados. E no meio do redemoinho está Riobaldo, que se deixa levar ao crime pela paixão arrebatadora por Diadorim.

GANHAR NO BERRO

Esse aspecto do livro, aliás, é difícil de adaptar às telas. Isso porque o Diadorim de Guimarães Rosa é por definição uma criatura fronteiriça (aliás, esse é um romance de fronteiras e travessias). Então vá lá, é difícil pensar numa solução que faça jus a sua criação. O que é certo, todavia, é que Arraes definitivamente consegue resolver esse problema. Seu tom esquizofrênico impede que as relações se estabeleçam e que “Grande Sertão” atinja a gravidade almejada. As cenas se sucedem sem razão de ser e o filme se move aos trancos e barrancos, entre uma gritaria e outra, sem nunca engatar de fato. 

É difícil também culpar os atores. A gente sabe que o elenco tenta seguir o que é pedido pelo cabeça da empreitada e o único direcionamento que Arraes parece ter dado aos seus atores foi “gritem o máximo possível”.

É quase como se o diretor quisesse ganhar no berro. Perdido diante de uma obra colossal, Arraes tenta tornar seu projeto num filme globalizante e múltiplo. O resultado é também múltiplo: uma distopia genérica, um filme de ação genérico, um favela movie genérico, uma adaptação teatral genérica e uma adaptação literária genérica.