Homem-Aranha 2 é o melhor filme de super-herói de todos os tempos? Pessoalmente, eu não chamaria de maluco alguém que respondesse “sim” a essa pergunta. No mínimo, deve estar em um top 5, até um top 3 de qualquer fã de filmes sobre heróis de histórias em quadrinhos.

Essa sequência representa, em todos os aspectos, um avanço em relação ao seu predecessor, que já era bem bom. A mudança do formato de tela para o Widescreen o deixa mais épico e bonito que o primeiro Homem-Aranhaos créditos de abertura ilustrados pelos belos desenhos de Alex Ross são um espetáculo à parte. Os efeitos visuais estão bem melhores, mais refinados. Os atores estão mais à vontade. O diretor Sam Raimi também: sua câmera está mais inventiva; seu comando da narrativa mais seguro. Ele está se divertindo mais nesta sequência, e é aqui que a sua visão para o mais famoso super-herói da Marvel se cristaliza. E qual é essa visão? A de usar o personagem, a quem Raimi nitidamente ama, para fazer uma parábola moderna sobre o quão difícil, às vezes, pode ser fazer o bem no mundo.

Pode parecer meio pomposo afirmar isso a respeito de um blockbuster hollywoodiano cheio de efeitos visuais, o tipo de produção cinematográfica que, muitas vezes, é desprovida de alma, ideias ou qualidade. Mas o dilema de Peter Parker (Tobey Maguire) em Homem-Aranha 2 é bem claro desde o início: ser herói e fazer o bem, para ele, não está compensando. Ambientado dois anos após o primeiro filme, nesta continuação de cara já vemos o Peter com problemas financeiros, não consegue estudar nem manter um simples emprego de entregador de pizza, está se estranhando com seu amigo Harry (James Franco) e cada vez mais distante do seu amor, Mary-Jane (Kirsten Dunst), para quem a fila já andou. Tudo porque suas atividades como herói escalador de paredes estão atrapalhando seriamente a sua vida. Por que, então, ele continua?

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O Homem-Aranha talvez seja o super-herói mais movido por um senso moral. E várias obras da filmografia de Sam Raimi abordam dilemas morais: no magistral suspense Um Plano Simples (1998) – um filme injustamente pouco lembrado hoje –, os personagens se deparam com uma fortuna e, ao decidirem ficar com ela, passam a sofrer as consequências quase que imediatamente. Em Arraste-me para o Inferno (2009), o retorno do diretor ao terror depois da sua trilogia com o herói aracnídeo, a protagonista de coração bom comete um erro, passa a ser punida de modos aterrorizantes por causa dele e tenta evitar a sua condenação durante o filme inteiro.

Homem-Aranha 2 se adequa perfeitamente nesta “linha investigativa” de Raimi: um olhar sobre as coisas boas e más que o ser humano faz e o custo de cada uma. E vale lembrar, o roteiro do filme é levemente inspirado pela HQ Homem-Aranha Nunca Mais da fase clássica do personagem por Stan Lee e John Romita, na qual Peter abandona brevemente sua identidade heroica após passar por vários problemas pessoais.

E de fato, no filme, ele também chega a abandoná-la em um momento dramático que recria a capa desta HQ específica. Mas até chegarmos a esse momento, quem poderia discordar da sua decisão? Desde o começo de Homem-Aranha 2, Raimi e os roteiristas – que incluem Alvin Sargent, vencedor de Oscars por Julia (1977) e Gente como a Gente (1980) e o romancista Michael Chabon – se divertem empilhando cena após cena com o pobre Peter se dando mal. O resultado é um dos protagonistas mais empáticos, mais relacionáveis da história recente dos blockbusters. O espectador sente vontade de entrar na tela e dar um abraço no coitado.

Curioso notar também a construção do vilão da trama. Vários inimigos do Aranha nas HQs – e os da trilogia de Raimi em particular – são criados por acidentes científicos e nem são totalmente malvados. Até sobre o Duende Verde do primeiro filme, pode-se pôr a culpa na dupla personalidade. O vilão de Homem-Aranha 2 é o reflexo no espelho do herói: o dr. Otto Octavius (vivido pelo ótimo Alfred Molina) é tudo que o Peter sonha em ser: um cientista conceituado e capaz de equilibrar carreira com a vida pessoal. Mas ao sofrer um acidente com seus braços mecânicos, Octavius se transforma, deixa de trabalhar pelo bem da humanidade para se tornar uma figura maldosa, controlada em certa medida por seus tentáculos. O herói personifica o altruísmo, já o vilão é o egoísmo e ambos apresentam trajetórias opostas ao longo da narrativa.

AS AUTORREFERÊNCIAS DE RAIMI

No meio tempo, enquanto vemos Peter Parker encarar sua crise – chegando até a perder um pouco dos poderes – e enfrentar o “Doc Ock”, porque ele não tem refresco mesmo, o filme presenteia o espectador com algumas cenas impressionantes. Em Homem-Aranha 2, é um prazer ver o Raimi maluco e destemido de volta: sua câmera voa com o herói, pula e, em certo momento, parece ser quase atirada por um estilingue na direção de uma multidão. A cena do hospital com a fuga do vilão após o acidente é uma clara homenagem a seu clássico Evil Dead e as origens no terror.

O esconderijo do Doc Ock também remete levemente a Darkman: Vingança Sem Rosto (1990) de Raimi, cujo protagonista também era um cientista vítima de um acidente que se isolava da sociedade por ter virado um monstro. Essas autorreferências poderiam soar antipáticas e vaidosas, mas acabam sendo divertidas. 

E, claro, momentos inspirados como um carro jogado por uma vidraça atrapalhando o encontro de Peter e Mary-Jane ou a tocante sequência ao som de Raindrops Keep Falling on My Head na qual nosso herói enfim tem uns breves momentos de felicidade ou a luta no trem são momentos que alugam espaço na mente dos fãs de cinema fantástico e de lá não saem mais.

A CAPACIDADE DE FAZER O BEM

Na minha crítica de Homem-Aranha deixei clara minha opinião sobre o Tobey Maguire, mas é preciso reconhecer que aqui é o melhor momento dele como Aranha, talvez a melhor atuação da carreira. O ator incorpora o tema do filme de uma maneira tocante e engraçada, sem nunca deixar as coisas descambarem para o pastelão ou o seu oposto, a mão-pesada – que é o que ocorre em Coringa (2019), por exemplo, outro filme com uma construção de personagem parecida com a de Homem-Aranha 2, mas partindo totalmente para o polo oposto e com um toque enviesado. Enfim, não apenas Maguire, mas todo o elenco está afinado com a proposta aqui. Dunst e Franco parecem realmente engajados, e Rosemary Harris como Tia May e J. K. Simmons como Jameson brilham e roubam algumas cenas com seus desempenhos inspirados.

E um dos aspectos mais interessantes do filme é que ele não martela suas ideias na cabeça do espectador. Homem-Aranha 2 é sutil: caso o espectador apenas queira dar risadas das trapalhadas em que o protagonista se mete e prestar atenção nas cenas de ação e efeitos visuais, tranquilo. Porém, há um subtexto ali; é, acima de tudo, um raro blockbuster orientado ao personagem e seu drama. Em meio aos superpoderes, o humor às vezes bobo contrasta com momentos sérios. E no fim das contas é uma história sobre poder e responsabilidade, a noção central do Aranha desde a sua concepção.

A abordagem é tão inteligente que o dilema do filme nem se resolve: Raimi e Homem-Aranha 2 não chegam a uma conclusão sobre se vale a pena ou não fazer o bem. Para Peter, é um jogo sem vitória. O poder e a responsabilidade se equilibram. Alguns filmes abordam levemente a noção de que ser herói é um fardo; Homem-Aranha 2 nos faz sentir isso. Durante a história, Peter salva algumas vidas e certas pessoas veem seu rosto e compreendem seu dilema. Quem coloca um ponto final na situação dele acaba sendo Mary-Jane, que o aceita pelo que é e também o risco de viver junto com o Homem-Aranha.

Ou será que o dilema se resolve? Afinal, no fim das contas, todos os personagens do filme têm seu lado bom, até os que são maus. Se Peter Parker sofre por sacrificar a própria felicidade e a vida em prol da responsabilidade, Sam Raimi afirma com Homem-Aranha 2 que todos temos a capacidade para fazer o bem; é só colocar a cabeça no lugar. Assim, ele faz um filme bastante otimista, que não afirma com todas as letras que você vai ser feliz se fizer o bem para os outros, mas reforça que uma conduta positiva é possível, e o que se pode fazer. Belas ideias para um filme de herói feito para arrasar nas bilheterias e vender brinquedos.

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