“Meu Pai” começa ao som de uma ópera que acompanha os passos de uma mulher que anda por uma rua aparentemente pacata. Não demora muito e percebemos que essa música é escutada por outro personagem em fones de ouvido. Essas duas cenas simples revelam logo a essência do filme dirigido por Florian Zeller: um drama que, tal qual uma ária, é sentido de formas diferentes pelas pessoas por ele afetadas.
Indicado a seis Oscars, a produção britânica começa em uma rua, mas é ambientada realmente dentro de um apartamento. Lá, um homem idoso (Anthony Hopkins) tenta resistir às tentativas da filha de lhe arrumar uma cuidadora. Em meio a tudo isso, questões não resolvidas do passado surgem de forma a tirar o espectador da zona de conforto.
Baseado em uma peça de autoria do próprio Zeller e adaptada para o cinema com o reforço de Christopher Hampton (roteirista de obras como ‘Desejo e Reparação‘ e ‘Ligações Perigosas‘), “Meu Pai” é um exercício de empatia, mas, ao mesmo tempo, não se furta de testar as reações do público para com seus personagens.
O ar adorável do Anthony interpretado pelo xará Hopkins (realmente merecedor de todo e qualquer prêmio) é desafiado pela dificuldade de comunicação com a personagem de Olivia Colman (que aqui surge contida, sem qualquer resquício da fina ironia que imprimiu à rainha Elizabeth em ‘The Crown‘, ou do histrionismo brilhante de ‘A Favorita’).
A CASA como extensão da confusão mental
Mas que um filme com essas credenciais seja capitaneado por grandes atuações de Hopkins e Colman é esperado. E “Meu Pai” já ganharia pontos fosse só isso. Só que ele vai além, ao explorar a psique de alguém que vive com demência e transformar essa experiência em algo sensorial. E nada melhor que usar um símbolo tão importante quanto a própria morada dos personagens para pôr as relações em xeque.
Junto ao montador Yorgos Lamprinos e ao diretor de fotografia Ben Smithard, Zeller faz do apartamento uma extensão da confusão mental de Anthony. Ora vemos uma cor, ora vemos outra. Ora um cômodo parece maior, ora tem outras dimensões. Os corredores parecem mais pedaços de um labirinto sem saída e o sol que bate sem cessar parece ser um sinal de que o tempo ganhou outra régua.
“Meu Pai” é um filme de decisões difíceis, com diálogos que revelam mais do que explicam. Ainda que a angústia seja sentida sem peso na balança maior para um dos lados, o filme engrandece ao traduzir a experiência de uma pessoa convivendo com uma doença que lhe tira a noção do que é real. Em tempos em que somos confrontados diariamente com a efemeridade da vida e o valor de um dia podermos estar fisicamente com quem amamos, é uma obra que merece atenção.