Com o mundo digital documentando cada passo da vida moderna, o passado está deixando de ser uma coisa difícil de revisitar – ao menos de um ponto de vista prático. Porém, dependendo da vida que você levou, esse processo pode ser doloroso, não importa o meio. 
 
O fantástico novo filme dos diretores libaneses Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, “Memory Box”, é um caleidoscópio de recordações embalado por uma trilha oitentista impecável. Sensível e emocionante, o longa é um dos melhores da seleção do Festival de Berlim deste ano e merece ser descoberto pelo grande público. 
 
Em uma nevasca na véspera de Natal no Canadá, Maia (Rim Turki) recebe um pacote cheio de fotos e correspondências de sua adolescência no Líbano. Receosa de abrir essa verdadeira Caixa de Pandora, ela proíbe sua filha adolescente Alex (Paloma Vauthier) de espiar seu conteúdo. 
 
Claro, como nas fábulas antigas, não existe nada que desperte mais a curiosidade do que a proibição – e Alex, ressentida por conhecer muito pouco da mãe emocionalmente fechada, revira o pacote de Maia. Ela descobre as fortes amizades da matriarca, a grande paixão dela por Raja (Hassan Akil), tristes segredos de família e um Líbano libertário e progressista massacrado pela guerra civil. 

 DISTANTE DO HERMÉTICO

Livremente baseado nos diários e registros audiovisuais dos próprios diretores, o roteiro escrito por eles em colaboração com Gaëlle Macé é uma celebração das amizades adolescentes e uma ode à juventude sufocada por conflitos armados. Através do ponto de vista de Alex, “Memory Box” também compara as vidas inteiramente digitais da atualidade e as memórias físicas das gerações passadas, achando pontos de semelhança e contraste. 
 
O destaque do filme, no entanto, é a maneira inventiva de como as recordações de Maia ganham vida na tela, com sequências feitas inteiramente através de colagens – algumas estilizadas a ponto de parecer até mesmo um videoclipe. Em conjunto com a editora Tina Baz e o diretor de efeitos visuais Laurent Brett, eles criam uma colcha de retalhos em que recortes de imagens, desenhos, voz e música se misturam, emulando como esse material é interpretado na mente. 
 
Essa abordagem, diretamente ligada ao seu trabalho nas artes visuais e na pesquisa acadêmica, poderia ser hermética em outras mãos. No entanto, em “Memory Box”, forma e conteúdo se encaixam de maneira tão fluida que é impossível tirar os olhos da tela. O filme partilha certos temas com outro selecionado para a Berlinale deste ano – “Miguel’s War“, de Eliane Raheb – mas sua narrativa mais tradicional deverá torná-lo mais acessível a uma maior audiência. 
 
De fato, o triunfo de “Memory Box” é usar técnicas do cinema experimental em prol de um cinema narrativo emocionante e inteligente, que quer, na especificidade, falar de temas comuns: o abismo entre presente e passado, a permanência da memória e a busca por novas chances na vida. 

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...

‘Rebel Moon – Parte 2’: desastre com assinatura de Zack Snyder

A pior coisa que pode acontecer com qualquer artista – e isso inclui diretores de cinema – é acreditar no próprio hype que criam ao seu redor – isso, claro, na minha opinião. Com o perdão da expressão, quando o artista começa a gostar do cheiro dos próprios peidos, aí...

‘Meu nome era Eileen’: atrizes brilham em filme que não decola

Enquanto assistia “Meu nome era Eileen”, tentava fazer várias conexões sobre o que o filme de William Oldroyd (“Lady Macbeth”) se tratava. Entre enigmas, suspense, desejo e obsessão, a verdade é que o grande trunfo da trama se concentra na dupla formada por Thomasin...

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...