Walter Benjamin escreveu há muito tempo que o ator nos filmes, ao contrário do que acontece nos palcos, é sempre ele mesmo, ou seja, a presença do ator na tela é mais forte do que o personagem que está interpretando. Nesse caso, vale a pergunta: seria Tom Cruise o a(u)tor mais interessante do cinema norte-americano atual? 

Em “Top Gun: Maverick”, o astro lutava para provar seu valor frente a um mundo que o considerava um instrumento obsoleto. A moral daquela história, vocês se lembram, é que Maverick/Cruise segue sendo o melhor do melhor de todos. 

O que nos traz a este “Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1”. Depois de lutar contra agentes infiltrados, organizações terroristas supersecretas e contraventores globais de todos os tipos, eis a questão: pode Ethan Hunt lutar contra o destino – ele que, em um desses filmes, já foi descrito como a própria manifestação do destino ou coisa que o valha? 

Pois bem: aqui, Cruise não quer mostrar que é o melhor; ele parte do princípio de que isso já é um fato sabido. Com este filme, o astro quer nos mostrar por que faz o que faz. 

O peso da idade

No cerne da trama, algumas pistas sobre o passado de Ethan. Desta vez, o agente secreto precisa combater uma superinteligência artificial conhecida como A Entidade, que periga se espalhar por todo o mundo digital. Também precisa enfrentar um tal de Gabriel (a presença curiosa de Esai Morales) que, parece, está envolvido na bagunça que condenou Ethan a uma vida de espionagem pela IMF, décadas atrás. 

Sim, porque, ficará claro ao longo de “Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1”, salvar o mundo tem um preço. Esse preço está estampado na cara de Cruise: nas rugas de seu rosto sexagenário, nesse acaju altamente suspeito dos seus cabelos. 

Há um peso nisso tudo que é articulado por uma trama que coloca a espionagem em primeiro plano, mais que os feitos acrobáticos e a pulsão de morte de Cruise. A mera presença dos russos na sequência inicial, velhos vilões da Guerra Fria, parece ser uma piscadela marota nesse sentido. 

De volta ao passado

Naturalmente, esse tom remonta ao primeiro filme da franquia, dirigido pelo ilusionista-mor, Brian De Palma. Agora, é verdade que Christopher McQuarrie não é nenhum De Palma. Por outro lado, desde “Nação Secreta” e passando pela obra-prima “Efeito Fallout”, o diretor mais do que se provou uma presença firme atrás das câmeras. Ele sabe filmar com estilo, mas é difícil dizer se ele tem, enquanto diretor, “um estilo”. 

Pois aqui, mais do que nunca, ele parece remeter mesmo ao velho “Mestre do Macabro”: o jogo de espionagem franco, as verdades cambiantes, os fantasmas da visão (frutos da tal Entidade) – e, claro, alguns vários planos holandeses. Aliás, curiosa a forma como McQuarrie decupa os diálogos, alternando ângulos de câmera contrastantes que enquadram um mesmo ator. Reparem: tudo alimenta a confusão, a paranoia. 

Isso sem falar na presença de outro personagem do filme original: Kittridge, o burocrata irritante de Henry Czerny, ausente da franquia por mais de 20 anos. Ele aparece como lembrete, mais um dentro desses filmes, de que nem mesmo o governo é confiável. Melhor deixar essa coisa de salvar o mundo na mão do indivíduo – o indivíduo certo, é claro. Se o espião age sozinho, é por ser a pessoa mais solitária do mundo. 

Ethan por Ethan

Com as maquinações intrincadas da trama em primeiro plano, sobra espaço para uma abordagem talvez mais “discursiva”: “Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1” está claramente interessado em discutir Ethan, e Ethan é Cruise. Curioso, então, como o filme pinta algumas sombras de culpa no personagem: em dado momento, o vilão nos diz que Ethan usa as mulheres que entram em sua vida, apenas para depois descartá-las. O momento salta aos olhos porque é a primeira vez que qualquer questão desse tipo é levantada na franquia. Merece uma inspeção mais demorada. 

Se Hunt não compartilha da misoginia escancarada de Bond, é por ser, acima de tudo, pragmático no que tange às mulheres: quando descobrimos que ele deu uma escapadinha com Alana (Vanessa Kirby reprisando o papel do último filme, ainda mais à vontade como a personagem, com seus olhos imensos e cílios longos), Hunt não se vangloria. Ele prefere deixar quieto. 

Mas há sempre, de fato, uma mulher em cada porto para Ethan Hunt – espiã ou criminosa, amiga ou inimiga. Nesse caso, resta uma explicação ao fato: a presença feminina precisa ser, antes de mais nada, complemento à figura do próprio Cruise – nosso eterno garotão. Isso é óbvio: é assim que filmes são construídos, afinal de contas, seja problemático ou não. Mas, Cruise sendo Cruise, agora é a hora de limpar sua barra. Ele nunca falou tão alto através de um filme. 

A culpa de Ethan vai ganhando outras pinceladas – algumas das quais, parece, só serão reveladas no próximo filme. Aliás, se “Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1” tem um defeito, ele está justamente no “Parte Um” do título: essa mania de dividir um capítulo em dois dificilmente gera um final satisfatório, vide o recente “Aranhaverso”. 

Não que Cruise e McQuarrie não façam de tudo para as nossas 2h40 no cinema valerem a pena – e a jornalista sentada à minha fileira comprova isso: ela passou a sessão inteira com um sorriso bobo na boca semiaberta, mesmo sorriso que, percebi depois, eu também tinha. E tem que ser assim: toda essa “tradução” do “subtexto” (esta frase já adquire ares desagradáveis), toda essa tradução não vale uma vírgula quando o filme em si é árido, não empolga, não comove (essa expressão bonita: mover-se junto a algo, co-movimento). 

E se o filme empolga, a novidade aqui é que, quando a grande acrobacia do longa, aquele salto de motocicleta alardeado nos trailers, finalmente acontece, você se pega pensando: “Não é mais divertido, Tom. Você precisa de ajuda”. 

Na mesma toada, quando Hunt diz a outro personagem que “sua vida é mais importante para mim do que a minha”, fica clara a diferença entre “Acerto de Contas” e “Fallout”: no longa anterior, o masoquismo de Cruise era o motor da ação, a força por trás de seus feitos incríveis que traziam à tona o maravilhamento diante do cinema; já aqui, o masoquismo ganha ares sofridos, como a meditação de um astro temerário do ocaso ou, pior, da solidão. 

Se Cruise inspira toda essa análise de botequim, é simplesmente porque, no centro do picadeiro, ele sempre fez questão de ser o equilibrista, o mágico e o homem-bala, colocando seu próprio corpo na linha de frente. Se Benjamin está certo, então nenhuma outra presença na tela é tão forte quanto a de Cruise. 

Assim, resta apenas a triste constatação: o espião é a pessoa mais solitária do mundo. Tom Cruise é a pessoa mais solitária do mundo.


PS: Uma jornalista reclamou comigo sobre os diálogos do filme. Deixe-me usar este espaço para defender a estilizações verbais mcquarrieanas: enquanto alguns se irritam com o que julgam ser tolos diálogos expositivos, eu me divirto com a rapidez com que os atores disparam termos absurdos, completando as falas uns dos outros. Tudo vira uma grande dança verbal que escancara alegremente o jogo lúdico do fazer-cinema.