Crescer com todas as belezas e dores deste processo sempre foi para Peter Parker tão e/ou até mais desafiador do que encarar os Octopus, Venoms, Osbournes que cruzaram o caminho do herói nos quadrinhos e nos cinemas. Que o diga “Homem-Aranha 2”: na melhor live-action do personagem feita até hoje, o pobre coitado mal consegue pagar o aluguel e ainda precisa lidar com a exploração da versão primária do Ifood.  

“Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” enfrenta este crescimento por duas vias: o tradicional com o herói lidando com os velhos dilemas e o conceitual ligado ao cânone formativo do personagem. Inevitavelmente, os dois se cruzam em uma animação que busca novos caminhos ao mesmo tempo em que honra e homenageia o aracnídeo de todas as formas possíveis em uma animação (quase) brilhante. 

“SER PAI É UM MISTÉRIO” 

“Você culpa seus pais por tudo
E isso é absurdo
São crianças como você”. 

Ok, “Pais e Filhos” já foi usada tantas e tantas vezes que acabou não apenas se tornando um clichê como cafona. Ainda assim, estas estrofes do clássico da Legião Urbana composta por Renato Russo se casam à perfeição com um dos dilemas mais fortes de “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso”. Durante os 140 minutos da animação, há um verdadeiro embate entre as duas gerações: de um lado, os filhos dispostos a serem livres e não mais viverem em segredo, enquanto temos pais protetores, preocupados e errantes. 

E é justamente na figura dos mais velhos a riqueza explorada em “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso”: diferente das tias Mays e tios Bens das versões com Tobey Maguire, Andrew Garfield e Tom Holland, os pais de Miles Morales assim como o pai de Gwen Stacy são figuras longe da maturidade plena. Cada um a seu modo, ora de forma dramática ou bem-humorada, fazem trapalhadas, exageram nos tons das cobranças, sufocam suas crias sem perceber quão danoso este comportamento pode ser. Saem de cena as figuras idealizadas tal qual sábios jedis e entram figuras humanas, ainda no processo interminável de aprendizagem de serem pais, com seus acertos e erros em busca do melhor para os filhos.   

Por estes desalinhos que as sensações de isolamento de Miles e Gwen ficam ainda mais palpáveis. Afinal, ambos não possuem ninguém para se abrir, algo piorado por saberem que as pessoas com as quais poderiam dividir estas experiências e capazes de entendê-las, estão em outras dimensões, as quais, a princípio, não tem acesso. O solo de bateria da nossa heroína logo nos minutos iniciais de “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” traduz a dimensão da solidão adolescente de uma forma absurdamente energética em som e imagens. Uma sequência de intensidade e vibração rara como poucas vezes o cinema fez recentemente. 

Completamente conscientes deste dilema central da trama, o trio de diretores Kemp Powers, Joaquim dos Santos e Justin K. Thompson não se dá por satisfeito e reserva dois momentos de extrema felicidade para momentos-chaves em que os conflitos ganham novos contornos. Após uma série de sequências de ação em ritmo de total frenesi, “Através do Aranhaverso” puxa o freio por uns bons minutos para colocar Gwen e Miles em um momento intimista dentro de um mundo que parece o avesso ao deles. Mais tarde, o reencontro da heroína com o pai e a gradativa transformação das cores da ambientação do espaço diz mais do que qualquer diálogo seja capaz de externar. 

O CRESCER DENTRO DO CÂNONE

Desde o filme de 1989 do Batman, quantas e quantas vezes vimos Thomas e Martha Wayne morrerem para traumatizar o pobre garoto Bruce? Nos cinemas, todas as versões de Peter Parker tiveram seus tios Ben morrendo de formas trágicas – a exceção fica por conta do Tom Holland, o qual não escapou à maldição por conta da Tia May da Marisa Tomei. 

Responsáveis por “Uma Aventura Lego”, animação planejada inicialmente apenas para vender brinquedo, mas, que se tornou um filme totalmente anárquico, Christopher Miller e Phil Lord junto com Dave Callaham (“Tá Chovendo Hambúrguer”) propõe uma saudável discussão sobre o status do cânone dentro de uma obra, algo que os infernais fãs com suas implacáveis redes sociais tremem na base só de ouvir. 

Como diz o querido crítico do Cine Set e facilitador do curso “Passo a Passo do Roteiro”, Ivanildo Pereira, uma boa adaptação de um livro, HQ ou coisa que o valha para o cinema é a que respeita o espírito da obra. Agora, isso não significa que a mesma seja intocável e não possa ter elementos clássicos questionados, debatidos e até trabalhados. E o trio de roteiristas coloca Miles Morales no cerne da dúvida: precisa o herói passar por uma perda fatal para entender a responsabilidade de ser herói? Não basta toda a pressão interna de não poder assumir quem se é o suficiente para que compreenda o tamanho da sua missão? 

Através destes questionamentos, “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” amplifica o debate para os heróis do lado de cá da tela em uma conexão mais do que bem-vinda aos dias atuais. No meio da montagem frenética apropriando-se de forma para lá de eficaz dos recursos dos quadrinhos, do colorido hipnotizante e dos bons momentos de humor (“a metáfora do capitalismo” e o resgate do meme são os melhores), estamos diante de um filme consciente do seu tempo ao trazer um protagonista negro e outra mulher travando uma luta contra caminhos determinados por forças externas.