Junto com a Filmes de Plástico, a Anavilhana se tornou um dos grandes nomes do forte momento do cinema mineiro. Surgida do encontro entre a produtora Luana Melgaço e as realizadoras Clarissa Campolina e Marília Rocha, a empresa está à frente dos premiados “Girimunho”, “A Cidade Onde Envelheço” e “Enquanto Estamos Aqui”. Agora, é a vez de “Canção ao Longe”.

Dirigido por Clarissa Campolina, o drama mostra a busca de Jimena por sua identidade e por seu lugar no mundo. A jovem deseja se mudar da casa que compartilha com a mãe e a avó e onde se sente deslocada. Ela também precisa romper com seu pai, com quem mantém uma troca de cartas à distância. Nesse movimento, Jimena lida com sua origem, seu corpo, suas escolhas e se depara com o silêncio de suas relações familiares.

A produção marca o primeiro longa da artista plástica Mônica Maria como atriz, a qual conversou com o Cine Set ao lado da diretora Clarissa Campolina sobre “Canção ao Longe”.

Confira abaixo:

Cine Set – Clarissa, você vem de longas premiados como “Girimunho” e “Enquanto Estamos Aqui” em que você divide a direção seja com o Helvécio Marins Jr. ou com o Luiz Pretti. Aqui, é o primeiro longa solo na direção. Como surgiu esta decisão? De algum modo a jornada da protagonista influenciou ou inspirou? 

Clarissa Campolina Não sei exatamente como começa e termina o processo criativo; às vezes, ele inicia de um jeito e, depois, você considera ser necessário compartilhar e isso pode acontecer tanto contigo convidando como sendo convidado – este segundo caso, por exemplo, ocorreu em “Girimunho” com o Helvécio. Já o “Enquanto Estamos Aqui” foi tudo em conjunto com o Luiz, quando morávamos na Alemanha e debatíamos bastante os assuntos do filme. 

Quanto ao “Canção ao Longe”, eu tenho uma amiga com uma relação distante com o pai, o que chamou muito a minha atenção. Neste mesmo período, eu fiquei grávida e pensando demais nos modelos de família, sobre o que significava e o que era ser mãe, além de como apresentar o mundo ao meu filho de forma que ele possa ser menos preso a um padrão. Todas estas questões, talvez, tenham feito eu seguir sozinha no projeto. 

Isso não significa que, a partir de agora, jamais irei voltar a trabalhar em codireção; aliás, meu próximo filme é dividindo a autoria. No fundo, eu me interesso profundamente nos processos criativos compartilhados em que, mesmo dirigindo solo, consigo deslocar o meu olhar. 

Acredito que a arte e a vida devam ter muito deste deslocamento de olhar, ou seja, duvidar de si, questionar aquilo que você pensa, observar como você fala, ir atrás, voltar, repensar, refazer. Esta preocupação estava muito presente em “Canção ao Longe” de forma que os atores e a equipe estivessem integrados à construção criativa a ponto de que as coisas pudessem mudar, mesmo como uma ideia prévia. 

Cine Set – No material de divulgação, há uma declaração sua, Clarissa, que a proposta inicial do filme data de 2012 e o centro da narrativa era o retrato íntimo das relações familiares e sociais. Porém, a chegada da Mônica aprofundou isso para caminhos ainda mais profundos, especialmente, a abordar as questões raciais. Gostaria que vocês falassem como se deu este encontro e de que forma vocês foram trabalhando para chegar ao resultado visto na tela.  

Clarissa Campolina Conheci a Mônica em uma sessão de cinema no Cineclube Aranha e, depois, fomos a um bar. Sentamos próximas e começamos a conversar. Achei ela bastante magnética, o que me despertou muito interesse nela.  

Durante a pesquisa para a procura de atores e atrizes para o filme, eu junto com a Paula Santos, assistente de direção, preparadora de elenco e autora das cartas da história, elencamos nomes de atrizes e não-atrizes para a protagonista e lembrei da Mônica. Fomos atrás dela e a chamamos para uma conversa em um outro bar. Foi um bate-papo maravilhoso sobre as questões do roteiro, falei um pouco de mim, a Paulinha dela e a Mônica também.  

Apesar da linha-mestra do roteiro do pai distante, o não-pertencimento à própria casa e o desejo de questionar as estruturas impostas pela sociedade, a bagagem de vida e as histórias trazidas pela Mônica alteraram muito o filme. A questão racial e de classe de uma menina negra em uma família de classe média alta de mãe e avó branca entrou também em “Canção ao Longe”. Neste sentido, o projeto foi ganhando mais camadas e ficou mais complexo anteriormente ao início das gravações.  

Mônica Maria – Não tenho a memória da Clarissa, mas, eu lembro de um encontro nosso durante o festival de cinema de Ouro Preto, em 2018, e voltamos juntas de carro para Belo Horizonte. Passamos uma hora em um carro cheio e sai de lá com a sensação de que ela era muito gente boa, querendo ser amiga dela. É muito fácil gostar da Clarissa e de estar perto dela. Logo, quando veio o convite para “Canção ao Longe”, fiquei muito feliz por poder estreitar os laços. Quem diria o que virou… eu não esperava. Apesar de já ter feito uma ponta em um filme, não estava nos meus planos atuar. 

Cine Set – Mônica, logo de cara, sua personagem contextualiza para o pai e a nós a vida dela, definindo ao dizer que é uma pessoa “afastada da própria vida” e isso acompanhado por um olhar distante da tua personagem. Como você foi trabalhando para levar para a tela uma personagem que, muitas vezes, parece tão distante, fechada, introspectiva? 

Mônica Maria – A construção da personagem foi muito delicada e fluída. Estava em um momento parecido da Jimena, logo, tinham muitos pontos que conversava com a minha vida e o jeito com que lidava com as coisas. Por isso, as instruções eram bem simples, básicas e até naturais. Não foi um desafio muito grande pensar nos movimentos e no olhar que acontecia em cada cena. Eu mesma estava mais fechada, introspectiva. Isso me ajudou, acho. 

Clarissa Campolina A Mônica tem muita consciência da personagem e é curiosa demais. No set, ela perguntava o tempo todo: “a câmera está onde?”, “qual é a lente?”. Então, ela olhava para o espaço e mantinha uma ótima relação com a câmera e, consequentemente, a equipe de fotografia. Vejo sim um reflexo das vidas de Jimena e Mônica, mas, ela construiu uma personagem. 

Por ser uma artista plástica, ela traz um jogo de composição corporal muito particular, algo que era bastante conversado entre a gente. A Mônica perguntava: “se eu não falar nada, como eles vão perceber o que estou sentindo?”. O debate era que o sentimento interno aparece no olhar ou em uma expressão facial ao ser filmado, então, trabalhávamos nesta construção internalizada da Jimena. E claro que havia as cartas com as narrações que traziam uma camada sonora à personagem. 

Cine Set – Em uma das cartas, o pai vira e fala que a Jimena era uma garota mimada. E isso chama a atenção porque joga luz sobre a vida que ela levava de certo comodismo ou imobilidade com aquela situação anteriormente por tudo, teoricamente, está dando certo. Gostaria que vocês falassem sobre este ponto de vista em relação à protagonista e até mesmo do que a move para partir a este novo processo. 

Mônica Maria – Eu tive várias sensações em relação a esta personagem. Já cheguei a criticar, por exemplo, a forma como ela lidava com as situações. Admito que nunca fui a maior fã da Jimena. Tem parte do que o pai dela fala que eu concordo porque, às vezes, dependendo do meu humor, fico pensando ela só está querendo sair de casa. Que drama é esse? Só vai. Por que você está neste melado todo? 

Clarissa Campolina – Ela chama o pai nas cartas anteriores perguntando onde ele estava e o motivo de não a responder. Daí, vem esta declaração de que a Jimena está paralisada, reclamando de estar afastada de si mesma e que ela é mimada. O pai tem as razões dele para chegar a esta conclusão. Na verdade, considero ser difícil para ela, pois, apesar da aparente normalidade, há um furacão interno que não a deixa se reconhecer na própria casa.  

Cine Set – Um dos trechos mais interessantes do filme está na carta do pai para a Jimena em que a leitura tão específica para ela sobre a garota paralisada, com medo se expande através das imagens da cidade. Quais paralisias, medos coletivos vocês acham que mais reverbera na protagonista para além dos pessoais? Acreditam em perspectivas melhores neste pós-pandemia e com a mudança política no país? 

Clarissa Campolina A cena com esta imagem e som foi muito pensada no Brasil atual em como estamos tão na correria do dia a dia que fica difícil parar e reivindicar coisas que são óbvias. Tem um jeito tão rápido com que a cidade e o mundo se movem e a sociedade se comunica via redes que gera um estado de insatisfação.  

Mônica Maria – É bonito relembrar esta cena porque ela mostra também como muita gente evita a transformação. Essa dificuldade de lidar com o que não é estático está presente tanto na geração mais velha como também na mais atual. Nada, porém, é fixo. Nada se sustenta por tanto tempo. Tudo precisa ser revisto e melhorado. 

Cine Set – Clarissa, uma sequência interessante de “Canção ao Longe” trata sobre a conversa de um grupo de mulheres em que uma delas está grávida e há um debate sobre a maternidade, especialmente, solo no caso dela. Gostaria que você falasse deste momento, do que ele representa até por conta de uma entrevista para o blog Colab da PUC Minas, em que você disse que “Canção ao Longe” surge em meio a inquietações pessoas sobre conceitos, modelos de família durante a sua gravidez. Sobre o mesmo momento, gostaria de ouvir a Monica sobre a visão da personagem dela que parece repensar a visão dela após o posicionamento de uma colega.  

Clarissa Campolina Quem faz a personagem é a co-roteirista, a Sarah Pinheiro, que estava realmente grávida. O pai, inclusive, faz o som do filme e, curiosamente, é paraguaio. Esta cena traz um frescor e um novo olhar sobre o que a mãe da protagonista viveu de alguma forma, pois, ela foi abandonada pelo marido quando a Jimena tinha 7 anos.  

A sequência apresenta uma outra forma de família e possibilidade de ser mãe. Quando a perspectiva se torna da amiga, a Jimena acaba tendo uma percepção diferente. Sinto que ela não deseja condenar o pai nem se vitimizar por uma situação que está acontecendo, mas, todas aquelas questões a fazem pensar sobre a vida. Isso acontece neste trecho e também ao ver o Emílio com o filho. 

Ah, e outra curiosidade é que todas as demais mulheres da cena são amigas da Mônica. 

Mônica Maria Foi realmente um frescor esta cena por ter muito improviso. Tudo o que a a minha personagem fala ali veio da minha cabeça. Eu não consegui ser a Jimena totalmente pelo fato de estar rodeada das minhas amigas. Isso gerou um pouco de tensão para mim. Ainda assim acho que a Jimena buscava não procurar vilões e sim deixar claro que tudo ficaria bem. 

Cine Set – O cinema mineiro vive um boom impressionante nos últimos anos, muito por conta do trabalho da Filmes de Plástico e da Anavilhana. Vocês conseguem encontrar características que definam a produção do Estado?  

Clarissa Campolina – Tem a Filmes de Plástico, a Anavilha, o João Dumans e Affonso Uchoa, Fernanda Salgado, Larissa Barbosa, Paula Santos, Marcos Pimentel… São muitas pessoas. 

Acredito que essa diversidade seja a grande força do cinema mineiro. Existe interesses e formas de filmar diferentes. Sinto ainda que existe também um recurso estético e de linguagem na nossa produção, muito disso proveniente por agregar profissionais de outros setores artísticos ao audiovisual.  

Era interessante demais em “Canção ao Longe” estar ao lado da Mônica e vice-versa. Estas trocas ficam visíveis no filme em um traço anterior à linguagem. Rio de Janeiro e São Paulo continuam dominando os recursos financeiros, mas, temos aqui o recurso dos afetos.