Pode ser tentador para o público, diante da repercussão memética negativa que o trailer de “Transe” recebeu, ir ao cinema com o intuito de chutar cachorro morto. Os que compram seus ingressos planejando tiradas mordazes para o final da sessão irão se decepcionar. Não só por se tratar de um motivo estúpido para assistir o que quer que seja, como também, principalmente, porque o longa é tão insípido, tão medíocre, que sequer é capaz de despertar qualquer resposta aflorada no espectador. O tédio é tudo que consegue.

O que temos aqui, afinal? Um grupo de jovens de esquerda, um triângulo amoroso, as eleições de 2018 e a narração em off de Luisa Arraes rememorando os dias idealistas e inocentes de sua personagem. O cenário: um apartamento na Lapa, onde os jovens em questão entoam canções de Caetano Veloso. Que um sujeito historicamente reacionário como Caetano Veloso tenha sido (e siga sendo) um dos totens dos jovens de esquerda serve apenas para mostrar como não há nada de novo nessa juventude.

Não que “Transe” se lance em qualquer discussão desse tipo como criar novos símbolos, como fugir dos lugares-comuns políticos etc. O que temos é uma série de mea culpas encadeadas através de cameos de figuras ilustres do campo progressista. Assim, quando os personagens percebem que talvez seja necessário o diálogo com os eleitores neopentecostais, logo aparece o Pr. Henrique Vieira no apartamento da galera para discursar sobre o verdadeiro cristianismo. E por aí afora.

O apartamento, aliás, como qualquer professor de um curso de cinema sabe, é o cenário favorito dos curtas universitários. Em se tratando de alunos majoritariamente de classe média, o apartamento representa um lugar seguro – é, afinal, onde os estudantes passaram a maior parte de seus dias. É também símbolo de uma existência que, por isso mesmo, é nutrida pela distância: tocar o mundo de longe, acompanhar da janela, manter-se, enfim, em segurança. Isso segue sendo verdade mesmo quando se põe os pés na rua: você pode pagar de boêmio da Lapa o quanto quiser, mas a chave do seu apartamento seguirá pesando ao redor do seu pescoço, como um lembrete da sua rede de segurança.

A AUSÊNCIA DA AUTOCONSCIÊNCIA

Como resolver o problema? Privando-se de fazer um filme? Pode ser, mas isso significaria extinguir 98% da produção fílmica brasileira, o que talvez não seja o ideal. Se não se pode correr riscos de verdade, um tiquinho de autoconsciência talvez ajude. E não se trata aqui de expurgar sua culpa católica na tela de cinema. Falo da autoconsciência que falta aos realizadores quando não parecem perceber que seus personagens são alguns dos seres humanos mais irritantes e detestáveis da região metropolitana do Rio de Janeiro. A cena de abertura já é um teste de resistência: ouvimos trechos de diálogos em uma festa (onde? Num apartamento, claro) em que ora é sugerido que a situação política se explica pelo movimento de Saturno, ora que a solução para a crise é uma orgia (o Brasil é o país do Carnaval, argumenta um sujeito). E isso é antes do Johnny Massaro tagarelar sobre física quântica.

Soa como uma sátira, mas “Transe” não parece se enxergar assim. Pior: essa dissonância sequer é capaz de gerar qualquer efeito produtivo. Temos aqui apenas o velho espetáculo da juventude progressista classe A que pensa ter algo importante a dizer. No caso, uma das diretoras é Carolina Jabor. Seu pai, Arnaldo Jabor, além de cineasta, todos sabem, conquistou o posto de um dos musos de direita para os notívagos que acompanhavam seus comentários políticos no Jornal da Globo. Agora imagine você como são os jantares em família nessa casa…