A história do amazonense Cosme Alves Netto é uma história de amor ao cinema, então nada mais apropriado que ela seja contada em filme. Tudo por Amor ao Cinema, documentário do diretor Aurélio Michiles, aborda a vida e a trajetória desta importante figura, cuja contribuição para o cinema brasileiro e latino-americano é significativa, e o faz pela visão daqueles que o conheceram e se contagiaram com o seu entusiasmo pela sétima arte.

E esse entusiasmo foi despertado cedo. Imagine a época em que a cinefilia de Cosme Alves Netto se iniciou: quando ele era jovem nos 1950, filmes só podiam ser vistos dentro do cinema. A televisão ainda engatinhava e o videocassete ainda demoraria décadas para aparecer. Logo no início do documentário, o próprio Alves Netto afirma num depoimento que “trabalha com memórias”. O desejo de tentar preservar a experiência que só a sala escura lhe proporcionava, de encontrar os filmes de que gostava e manter vivas aquelas memórias, o motivou a deixar a empresa do seu pai rico e a se voltar quase que inteiramente para a atividade de estudo e divulgação do cinema.

De organizador do Grupo de Estudos Cinematográficos do Amazonas – pelo qual pôde trazer para o Estado cópias em 16mm e 35mm de filmes aos quais o publico manauara simplesmente não tinha acesso – ao comando da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, Cosme Alves Netto ajudou na formação de cineastas, críticos e teóricos de todo o Brasil. E o filme de Michiles mostra todo esse processo por meio de imagens de arquivo da velha Manaus e do velho Rio de Janeiro, e depoimentos de figuras como Márcio Souza, Cacá Diegues, Walter Carvalho, Eduardo Coutinho, Joaquim Marinho, Nelson Pereira dos Santos, entre outros.

Os depoimentos ajudam a traçar o perfil de uma figura absolutamente apaixonada por filmes e determinada a preservá-los. E a ironia de uma figura como Alves Netto fica clara: no Brasil, o país tradicionalmente conhecido como “sem memória” e onde grande parte da produção não apenas cinematográfica, mas cultural, acaba se perdendo com o tempo, ele demonstrou a importância da preservação. Mas além de preservar, ele queria que os filmes fossem, acima de tudo, vistos: os esforços dele para salvar e exibir filmes censurados na época da ditadura militar ocupam grande parte da duração do documentário.

A esse respeito, um dos momentos mais interessantes é quando é revelado que a Cinemateca do MAM foi responsável por guardar o material gravado por Eduardo Coutinho quando da sua tentativa de fazer Cabra Marcado para Morrer em 1964, às vésperas do golpe militar. O longa só seria concluído nos anos 1980, quando Coutinho pôde recuperar o filme guardado sob a orientação de Cosme Alves Netto.

Como a cinefilia é um dos assuntos do documentário, a montagem faz uso de diversas cenas de clássicos do cinema nacional e internacional para ajudar a contar a história de Alves Netto. Ele provavelmente ficaria feliz de ver um filme sobre ele ilustrando situações da sua vida por meio de cenas de Pickpocket: O Batedor de Carteiras (1959) ou Encouraçado Potemkin (1925). Michiles até inicia o filme com uma imagem inspirada e carregada de cinefilia: uma oferenda a Iemanjá na beira da praia que traz de volta nas ondas uma lata de filme e o início da história do seu biografado. E de quebra, inclui no documentário cenas de um projeto do qual Netto participou, interpretando a si mesmo e contracenando com o ator Raul Cortez: Cinema das Lágrimas de Nelson Pereira dos Santos.

Cosme Alves Netto faleceu em 1996, no mesmo dia da morte de um dos seus ídolos, o ator, diretor e dançarino Gene Kelly de Cantando na Chuva (1953) – um dos filmes preferidos dele. Foi mais ou menos a mesma época em que Aurélio Michiles estava lançando O Cineasta da Selva (1997), seu filme anterior, parte ficção parte documentário sobre o cineasta pioneiro da Amazônia, o português Silvino Santos. Era outra história sobre um personagem até então pouco lembrado da história cinematográfica do Amazonas, e Alves Netto foi um dos primeiros a resgatar o nome de Santos graças ao seu trabalho de preservação do cinema e da memória. Agora Michilles, de certa forma, faz o mesmo por Netto.

Mesmo que um momento estranho se destaque em Tudo por Amor ao Cinema – como os dois depoimentos de entrevistados que desmentem um ao outro sobre a destruição de uma cópia do filme Alô Alô Brasil (1935) – ele não é suficiente para tirar o brilho do documentário. O filme de Michiles acaba fazendo com que Cosme Alves Netto se torne, em si, uma memória preservada em filme, uma brilhante passagem para “o outro lado do espelho”, por assim dizer. De tanto gostar de filmes e lutar para preservá-los, Netto acabou se tornando um deles, e é difícil imaginar uma melhor homenagem a ele do que essa.