Aqui no Cine Set sempre tentamos abordar, dentro do Especial Terror, como anda a produção nacional. O excelentíssimo Danilo Areosa, por exemplo, já fez esse artigo ótimo sobre o assunto. É um lugar-comum e um equívoco dizer que o Brasil não produz cinema de terror, e é igualmente errôneo generalizar essa produção e dizer que todos os filmes são ruins. A verdade é que a produção cinematográfica no país como um todo é complexa, reflete a grandiosidade da nossa extensão territorial e das várias culturas dos diferentes Estados. Mas o número de produções do gênero vem aumentando, o que se explica em grande parte pelos simples aspectos de realização: filmes de terror geralmente não precisam de muito dinheiro ou de uma produção muito elaborada.

Porém, pode haver outra explicação para o aquecimento do terror no cinema nacional. Sabemos, ao analisar a história do gênero, que os filmes de terror florescem e se tornam mais populares em épocas de convulsão social. Ora, no Japão o trauma da bomba atômica deu origem ao Godzilla; nos Estados Unidos os tumultos dos anos 1960 deram origem a toda uma safra de filmes que exploraram a sociedade dividida, o horror da Guerra do Vietnã e o sonho americano transformado em pesadelo. No Brasil, parece que isso também está acontecendo.

Mesmo assim, o ano de 2018 tem sido especial para o gênero no Brasil, em especial por causa dos lançamentos de três filmes expressivos e que não tiveram medo de tirar o espectador da sua zona de conforto: As Boas Maneiras, O Nó do Diabo e O Animal Cordial. Cada um, a seu modo, faz uso de elementos do gênero para retomar a mais velha tradição do terror, o de refletir os temores e ansiedades coletivas. E vamos convir, temores e ansiedades não faltam no Brasil…

Peguemos, por exemplo, O Nó do Diabo. É uma produção nordestina que faz uso do formato antologia – são várias histórias diferentes, ambientadas no mesmo lugar em épocas distintas, e cada história fica sob o comando de um diretor – para compor um painel do horror da época da escravatura, e como esse horror histórico nos acompanha ainda hoje. Apesar de o filme fazer uso de um conhecido formato de cinema, popularizado dentro do gênero horror especialmente pelos britânicos, o sentimento básico do filme e o seu contexto são absolutamente brasileiros. Afinal, o horror de ser negro no Brasil é um sentimento compartilhado por uma fatia expressiva da população.

O Animal Cordial, da diretora Gabriela Amaral Almeida, também usa um formato conhecido, o do filme situado num único cenário: É um longa “sitiado” no qual o mal não está tentando entrar no local onde se passa a história, na verdade ele já está dentro do lugar, aterrorizando os demais personagens. Um filme eminentemente paulista, O Animal Cordial toca em alguns pontos sensíveis do Brasil moderno: o grande vilão do filme, o empresário vivido por Murilo Benício, parece por fora o sujeito mais normal do mundo, mas mal consegue disfarçar sua homofobia e é daqueles para quem “bandido bom é bandido morto”.

De fato, o filme parece observar, num microcosmo, essa raiva que tomou conta do Brasil em tempos recentes, esse sentimento que impede o diálogo e qualquer tentativa de empatia com quem pense ou viva de maneira diferente do “padrão”. E é um filme que também não economiza no sangue e na loucura, como qualquer exemplar digno dos gêneros thriller e terror. Tenho algumas reservas com os rumos tomados pelo roteiro, como apontei na minha crítica, mas é inegável que O Animal Cordial é um filme sobre o Brasil de agora, e seu horror é genuíno e familiar.

E o melhor dos três filmes, As Boas Maneiras, é justamente o mais inovador. O filme dos diretores Juliana Rojas e Marco Dutra é uma fábula esquisita, onde nem tudo se encaixa ou faz sentido do ponto de vista de “trama”, mas isso na verdade nem importa tanto. Nele, estamos no terreno da fantasia, onde de novo vemos o abismo das relações sociais do Brasil sendo abordadas via contexto fantástico. A empregada negra e pobre (Isabel Zuaa) começa a trabalhar para a patroa jovem, branca, rica e grávida (Marjorie Estiano), e descobre o seu segredo. É um filme fascinante, dividido em duas metades e curiosamente os cineastas/roteiristas não se preocupam em amarrar direito a ligação entre elas. Mas isso não diminui o fascínio da obra, que se mostra bem plantada no terreno das fábulas, fazendo uso de elementos brasileiros – e ótimos efeitos visuais – para contar sua história única. Ao final, As Boas Maneiras se mostra tão diferenciado que nem se pode reduzi-lo ao estereótipo de “filme de lobisomem”.

E de novo, o horror das relações sociais brasileiras surge como subtexto na história, de forma mais discreta, mas não menos envolvente, que nos outros dois filmes. A relação entre as duas mulheres inicialmente desperta paralelos com a escravidão, tema de O Nó do Diabo. Mas as duas personagens de classes sociais distintas se aproximam – em parte porque a rica se tornou uma “pária” por causa da gravidez. Depois se afastam, não sem antes a pobre levar uma coisa da rica para o seu mundo, o que acabará tendo consequências para todos. Essa distinta separação entre as pessoas, e o elemento diferente que mais tarde se tornará importantíssimo para a história, são eminentemente brasileiros e bem trabalhados no filme. Que, aliás, não se esquece de assustar o espectador com elementos tradicionais do gênero – a cena dos garotos presos no shopping à noite, a turba enfurecida ao final que parece estar a caminho do castelo de Frankenstein…

As Boas Maneiras acaba sendo um dos melhores filmes nacionais do ano – talvez o melhor? Com certeza é o mais único. Junto com O Nó do Diabo e O Animal Cordial, demonstram a força do cinema de horror brasileiro este ano: Ora, nosso país é pródigo em lendas, causos, historinhas do tinhoso, violência entre as pessoas e políticos assustadores. Neste sentido, os três filmes refletem os temores atuais da sociedade e não oferecem respostas fáceis para como lidar com esses medos. A vida no Brasil anda muito assustadora e tende a ficar mais ainda, então esperem ver mais filmes de terror nacionais nas telas no futuro.

Bem… Para não deixar você, leitor, com uma sensação de medo ao fim deste texto… Sabe o que foi ainda melhor? Pudemos conferir os três nas salas de cinema de Manaus. Pelo menos os cinéfilos da cidade realmente estão vivendo um bom momento.