O diretor Luiz Fernando Carvalho é responsável por algumas das imagens mais significativas da história recente do audiovisual brasileiro. Pense na saga do coronel José Inocêncio na bela “Renascer” (uma obra-prima em forma de novela) ou na emblemática cena do senador Caxias discursando para três gatos pingados em “O Rei do Gado”, ou em Simone Spoladore dançando em “Lavoura Arcaica”, ou ainda nas soluções encontradas para compensar a morte prematura de Domingos Montagner na recente “Velho Chico”. Dito isso, não é de se surpreender que ele tenha sido o escolhido para capitanear a aguardada adaptação de “Dois Irmãos”, romance de Milton Hatoum. Ainda que as mudanças para a tevê tenham resultado em uma história menos ousada, o saldo foi de um conjunto de belas cenas emolduradas por uma fotografia inebriante e um elenco matador.

Falar sobre adaptações literárias é sempre complicado. Há de se entender que, entre o livro e o audiovisual, existem mais coisas do que sonha a nossa vã filosofia. É chover no molhado, mas tem que se frisar que são dois meios diferentes e que a tevê aberta ainda caminha a passos lentos em torno de trabalhos menos quadrados. Nesse sentido, as minisséries produzidas pela Globo têm sido o respiro de uma teledramaturgia que não surpreende há anos. Entre a poesia de “Os Maias” – adaptação de Eça de Queiroz dirigida pelo próprio Luiz Fernando de Carvalho lá em 2001 -, a agilidade de “Verdades Secretas” e a narrativa ‘diferente’ de “Justiça”, roteiros adaptados e originais têm mostrado que a tevê pode apostar em tramas menos formulaicas.

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A adaptação de “Dois Irmãos” pode parecer estranha a quem está acostumado com o bom e velho novelão (nada contra, inclusive adoro). Carvalho e a autora Maria Camargo não se rendem às convenções e fogem da tentação de transformar a saga de Omar e Yaqub em um drama de “gêmeo bom e gêmeo mau”. As nuances dos dois personagens são o que salta aos olhos de quem assiste à minissérie: se Omar é odiável, os conflitos do preterido Yaqub também têm vez. No centro de tudo, a personagem mais interessante da história, Zana, é retratada como uma mãe protetora e com uma preferência clara por Omar. O conservadorismo da produção, no entanto, se revela quando o incesto, tema recorrente na obra de Hatoum, fica subentendido tanto com a mãe quanto com a irmã dos gêmeos, Rania. É a tevê aberta, afinal.

Manaus é quase uma protagonista da história é recriada com riqueza de detalhes na minissérie. A montagem que funde imagens da cidade antiga com os cenários impecáveis do Projac leva o espectador a uma viagem no tempo. Aspecto que sempre salta aos olhos nos trabalhos de Luiz Fernando Carvalho, a fotografia aqui é assinada pelo DP Alexandre Fructuoso e evidencia o calor característico da cidade, bem como o temperamento impulsivo dos personagens. Já os dias chuvosos ganham um tom triste com o azul – no último capítulo, a imagem das águas ‘descendo’ a escada da casa é poética e representa a tragédia anunciada.

Falando em personagens, o desenvolvimento deles é cheio de cores além dos tons amarelados graças ao trabalho competente do elenco. Cauã Reymond se mostra um ator cada vez mais maduro e seu trabalho galgado na dubiedade de comportamento especialmente do mais contido Yaqub é admirável, principalmente nas cenas de embate com Omar (o jovem Matheus Abreu também tem um trabalho digno de nota e sua semelhança com Cauã impressiona). Juliana Paes e Eliane Giardini dividem a mesma Zana com maestria e esta última tem uma de suas melhores atuações, com o misto de amor e medo que imprime a cada momento e que culmina na bela e triste cena em que lamenta a morte do amado Halim (Antônio Fagundes, eclipsado por Giardini). Irandhir Santos tem mais um grande trabalho aqui e sua narração melancólica é fundamental para dar o tom da história.

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“Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras”, diz o narrador ao fim da história, parafraseando Halim. A minissérie encerra com mais uma emblemática imagem para o portfólio de Luiz Fernando Carvalho: o Encontro das Águas, resposta da natureza a Omar e Yaqub. É impossível não ficar embasbacado com a beleza das imagens. Mas “Dois Irmãos” é mais que um conjunto de belas imagens: é uma bela adaptação de uma obra sobre o amazonense, sobre o imigrante, sobre a mulher indígena relegada às tarefas do lar. É um trabalho sensível que mostra, em um período de intolerância, as pessoas que ajudaram a construir não só Manaus, como o país. Se você ama e defende a boa teledramaturgia como eu, sabe que nem tudo está perdido quando se fala nessa arte que por vezes se afoga em um mar de mesmices. E “Dois Irmãos” é prova cabal disso.