Tomando como referência o episódio anterior, considero essa segunda história de “Small Axe” um ponto fora da curva. A direção permanece impecável e, mais uma vez, a ambientação é o grande destaque da narrativa. No entanto, “Lovers Rock” carece de uma história mais contundente, pois, neste capítulo, a prioridade são as emoções e sensações ressaltadas.
No primeiro momento, há a percepção de que acompanhamos dois grupos distintos: as mulheres que cozinham e organizam uma casa para receber um evento e duas amigas que fogem de casa no meio da noite. Porém, conforme a narrativa avança, compreendemos que “Lovers Rock” se dedica a inserir pequenos dramas em uma Blue Party.
O episódio completo é uma homenagem a essas festas que a comunidade jamaicana de Londres celebrava nos anos 80, que consistia em uma discoteca móvel dentro de uma casa. Quem adquirisse ingresso, tinha direito a música, cerveja e comida. A câmera de Shabier Kirchner dessa vez mergulha de cabeça em todo o processo da manifestação cultural. Vemos desde o preparo da comida – regada a muito curry como no “Mangrove” – à energia caótica do baile. Para quem está com saudade de uma boa festa, assistir os quase 60 minutos de “Lovers Rock” é matar a saudade e, ao mesmo tempo, deixá-la mais viva dentro de si.
Os figurinos altamente identitários e as cores selecionadas por Jacqueline Durran (“Adoráveis Mulheres”, “Macbeth”) alimentam essa sensação, já que saltam aos olhos. Em certo momento, a câmera roda no meio do salão e nos deixa atordoados no meio de tantas cores, corpos e movimentos. Sem perceber estamos entrando no ponto alto da narrativa, quando “Silly Games”, de Janet Kay, toma conta do baile. A coreografia sincronizada, as cores vivas e a batida dançante parecem levar os personagens a uma espécie de transe. Se até o momento nenhum dos agentes da narrativa parece ter uma história forte o suficiente para criar laços significativos conosco, é nesta hora que fica perceptível que o maior elo formado é com a música de Dennis Bovell.
GATILHOS PANDÊMICOS
“Silly Games” é a música cantada pelas mulheres cozinhando no início da narrativa, sendo o fio condutor da irregular trama e isto prova-se na catarse que sua presença toma quando entoada tanto ao som do DJ quanto a capella. A sequência, que dura quase 10 minutos, é uma das mais bonitas do ano. Todos os corpos que a câmera foca parecem totalmente entregues e absortos a sua sonoridade. É como se ela fosse o hino que todos conhecem e esperam que toque para que, por alguns instantes, esqueçam totalmente o mundo que há lá fora. No caso de “Lovers Rock”, um lugar violento para mulheres, seja envolvendo questões raciais ou apenas as de gênero.
Em relação aos personagens, mesmo em meio a pequenas tramas como a da aniversariante (Ellis George), que roda o salão com seu vestido vermelho, e do ardiloso Bammy (Daniel Francis-Swaby) em busca de uma vítima feminina para sua teia, o grande destaque dado na narrativa é ao casal Martha (Amarah-Jae St. Aubyn) e Franklyn (Micheal Ward). Porém Martha brilha muito melhor sozinha do que com ele. Todas as situações que a envolvem dão espaço para dramas específicos com potencial para alimentar narrativas inteiras, seja quando tem um confronto com o primo ou quando anota o número da cabine telefônica. É por a acompanharmos que esperamos que a trama se desenrole, mas isso não acontece e as situações se tornam eventos isolados passíveis de ocorrer numa madrugada regada a álcool e, em alguns casos, más intenções.
Esses fatores tornam “Lovers Rock” sensorial, tátil e, em certo ponto, sensual. Os embalos da música jamaicana, a dança e o próprio cenário da festa são gatilhos para quem tem obedecido às medidas de segurança e saúde e se mantido distante desses eventos. Percebi, contudo, que sou totalmente contrária a esses encontros. Para mim, quem mais ganhou foi Patti (Shaniqua Okwok), que se ligou na energia caótica que a festa se transformaria e foi embora antes da pista de dança virar palco da música de Janet Kay, mas tenho certeza que a maioria de vocês não compartilha desse sentimento.
E assim ficamos atentos a que outras sensações McQueen despertará em nós.